Como a população de angola vive

No entanto, depois da independência, as coisas ficaram ainda piores. Estourou uma guerra civil que durou quase 30 anos, causou mais de 500 mil mortes e devastou o país. A independência de Angola não significou o início da paz, mas do inferno. 

Dois antigos movimentos de libertação começaram a lutar entre si pelo poder: Movimento Popular de Libertação de Angola MPLA e União Nacional para a Independência Total de Angola UNITA. Cada um deles era apoiado por uma potência estrangeira, o que trazia dimensões internacionais aos enfrentamentos. Além desses partidos, havia outros menos significativos. A guerra durou exatos 27 anos e o MPLA conseguiu a vitória com muita violência. O país foi totalmente destruído. Mais de quinze mil minas terrestres foram espalhadas pelo território e continuam sendo uma ameaça, apesar dos esforços para limpar o terreno. Mais de metade da população foi obrigada a se deslocar pelo território para fugir dos conflitos. Animais selvagens, infelizmente, quase não há mais no país. Meninos menores de idade eram obrigados a carregar armas e as meninas eram dadas de presente aos comandantes como prêmio. Em função disso, estupros ainda são comuns em Angola e a AIDS é um problema muito sério a ser contornado. A capital Luanda ficou à beira da miséria.

Há pouco mais de dez anos as coisas vem acalmando. Em 2002, com o fim da guerra civil, Angola começou a respirar aliviada e vem tentando se equilibrar em meio aos estragos, ao ressentimento e à pobreza que se mostra escancarada a cada esquina. É tudo muito recente. O cenário é desolador na capital Luanda que foi o epicentro dos combates. A maioria da população vive em condições desumanas. O lixo é acumulado nas ruas, com as chuvas provoca a proliferação dos mosquitos e gera surtos de malária.

Já deu para perceber que Angola não é um dos destino mais comuns na bagagem dos viajantes. Luanda é uma cidade feia, sem atrativos, extremamente perigosa e não está aberta ao turismo. No entanto, a vida tem me levado a trilhar lugares fora da caixa e adoro novas experiências. Aproveito todas as situações para conhecer pessoas, aprender com elas, quebrar paradigmas, ver a vida por outros ângulos, rever conceitos.

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Apesar de tudo, os angolanos têm sempre um sorriso estampado no rosto.

SOBRE AS CRIANÇAS

A realidade é muito cruel com as crianças angolanas nascidas em famílias que não tem boas condições financeiras, o que infelizmente representa a esmagadora maioria. Dois terços da população vive em favelas miseráveis sem água potável, luz elétrica ou saneamento básico, no centro e arredores de Luanda. Basta andar por qualquer canto da cidade para ver essa triste realidade. O índice de mortalidade infantil é enorme. Um estudo do Fundo das Nações Unidas feito em meados de 2015 aponta que de cada seis crianças, uma morre antes de completar cinco anos de idade, principalmente devido a desnutrição, malária e disenteria. Isso é chocante. Reflete simplesmente a mais alta taxa de mortalidade infantil do mundo.

Além disso, quase não tem médicos em Angola. O investimento em saúde é baixíssimo no país que é o segundo maior produtor de petróleo da África e o quarto maior produtor de diamantes do mundo. As famílias com alguma condição costumam se tratar principalmente em Portugal e no Brasil. Ouvi várias histórias de mães que passaram um período prolongado no Brasil para que seus filhos nascessem em segurança em hospitais particulares brasileiros. Essas crianças são privilegiadas. Tem dupla nacionalidade e podem sair de Angola com facilidade.

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A doçura das crianças angolanas.

Aliás, entrar e sair de Angola é outra questão delicada. Apesar do país ser uma "democracia", as coisas na prática funcionam bem mais pelo lado da "ditadura". O presidente José Eduardo dos Santos comanda soberano o país há 35 anos e histórias de corrupção são frequentemente noticiadas. 

A CHEGADA EM LUANDA

Chegar em Angola, a partir do Brasil, é relativamente fácil para quem consegue o visto. Há voos regulares da TAAG Linhas Aéreas Angolanas, que fazem Rio - Luanda ou São Paulo - Luanda em 7 horas e 30 minutos. 

Para entrar no país é necessário ter Certificado Internacional de Vacinação contra Febre Amarela e visto. O visto deve ser feito nas Embaixadas de Angola no Brasil. É bem caro. Custa 300 dólares. Além disso, é preciso apresentar uma carta-convite emitida por Angola para a liberação do visto. 

SOBRE O TURISMO NO PAÍS

Turismo ainda não é uma realidade. A infra-estrutura turística é zero devido a tanta guerra. Quem vai a Angola costuma ter algum vínculo de trabalho. E para falar bem a verdade, estrangeiros brancos não parecem ser muito bem-vindos. Os angolanos não lidam muito bem com as questões raciais. Tem reação negativa com as pessoas de fora. O que parece é que os ressentimentos recentes da guerra civil e as antigas mazelas da colonização portuguesa permeiam as relações humanas. Essa frase que ouvi no hotel traduz bem o que estou tentando dizer: “Imagina dois brancos andando sozinhos por aí. Todo cuidado é pouco. Assaltos a mão armada contra estrangeiros são comuns. Sair à noite, nem pensar. Apenas de carro e acompanhados por um angolano.” Por via das dúvidas, é de bom tom ser prudente.



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Como a população de angola vive

 Pelas ruas de Luanda.

COMO ANDAR PELA CIDADE

Para começo de conversa, taxis quase não há. Vi apenas três em uma semana. Além disso, é necessária uma reserva prévia com 24 horas de antecedência e os preços são exorbitantes, baseados na “cara” do freguês. O taxímetro é mero enfeite. Do aeroporto para o centro, que é muito perto, não leva mais do que 10 ou 15 minutos se não tiver trânsito, o valor pode chegar a 200 dólares. Isso mesmo. Um abuso total. Boa opção é contratar um carro com motorista para o dia todo por menos de 100 dólares. Vai resolver dois problemas ao mesmo tempo: você estará sempre acompanhado por uma pessoa de confiança que conhece a cidade e não vai se sentir explorado. 

Os angolanos costumam usar vans (ou candongas) e barcas para se locomover pela cidade.

Durante o dia até dá para caminhar por perto do hotel. Mesmo assim, a sensação de insegurança é grande, especialmente se você se afastar das ruas principais. 

DIRIGIR PODE?

Dirigir em Angola é perigoso. O trânsito é caótico e se houver um acidente, as pessoas cercam o carro e o motorista corre o risco de ser linchado. Portanto, nem pense nessa hipótese. 

Nas estradas é pior ainda. Não há acostamento, crateras gigantescas são uma constante e guardas rodoviários fazem questão de parar os motoristas para pedir propina. Num trajeto de pouco mais de 100 quilômetros fomos parados duas vezes.   


MELHOR ÉPOCA PARA VISITAR ANGOLA


As estações do ano são as mesmas do Brasil e o clima é parecido com o do nordeste. Faz muito calor entre novembro e março. Indico o período mais fresco de abril a outubro. 

BOAS LEMBRANÇAS

Visitei Luanda em dezembro. Como estava muito quente, comprei um prendedor de cabelo. Na ponta havia um pequeno boneco esculpido em madeira. Quando entrei no carro, a pessoa que estava me acompanhando disse que eu estava usando um “Pensador Tchokwe” e que o criador daquela imagem tinha sido seu pai. Depois fiquei sabendo que ele era um artesão conhecido na cidade e que havia ensinado seu ofício a boa parte dos artesãos do Mercado de Benfica.

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Artesão do Mercado de Benfica mostrando sua arte. 

Observe atrás dele, em madeira bem escura, estátuas do "Pensador Tchokwe".

Essas histórias garantem as boas lembranças da vida e fazem uma viagem valer a pena. Pedi a ela que me contasse sobre o “Pensador”. Quando seu pai era jovem e a guerra estava tirando o sossego das pessoas, ele resolveu esculpir uma figura masculina que consternada, pensativa, sentada com as mãos na cabeça rogava para aquilo tudo terminar. Assim, ele criou essa imagem que virou um ícone no artesanato angolano.

No dia seguinte fui ao Mercado de Benfica e fiquei encantada com o trabalho feito em madeira pelos artesãos. É uma visita que vale a pena em Luanda.

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 Simplicidade, sorrisos e arte.

OUTROS LUGARES A VISITAR EM LUANDA

Luanda não é propriamente uma cidade bonita e não tem muito para se ver. É formada por uma parte no continente e uma ilha, a Ilha do Cabo, repleta de praias e restaurantes voltados para o Oceano Atlântico. Recentemente, Luanda ganhou uma nova avenida à beira-mar chamada de Marginal.

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Skyline de Luanda visto da Ilha de Luanda.

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Centro de Luanda. 



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Avenida Marginal.  

Comecei dando uma circulada geral pelo centro da cidade, de carro. Os prédios mais modernos e bem conservados são os do governo. Eles costumam ser pintados em tons de rosa e têm arquitetura colonial. Nem pense em fotografar esses prédios. Eles são vigiados constantemente por guardas armados e quem é visto fotografando corre o risco de ser preso. Isso não é piada. No ano passado, um engenheiro brasileiro que veio ao país a trabalho foi preso por esse motivo. Do carro, apontei para o Palácio do Presidente e o motorista apavorado disse que eu não podia fazer nenhuma menção ao prédio, nem com as mãos nem com o olhar. E dizem que o regime político do país é a democracia. 

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 O prédio rosa com a cúpula é o BNA, Banco Nacional de Angola.

Depois visitei o Mausoléu de Agostinho Neto, o primeiro presidente do país. Ele é adorado por muita gente, mas há controvérsias sobre a construção do mausoléu. Afinal, trata-se de um país em que tanta gente passa fome. O Memorial fica na Praia do Bispo. Tem uma torre de 120 metros de altura cercada por jardins. Dizem que a obra foi um presente russo e os traços realmente lembram um foguete. 

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Mausoléu de Agostinho Neto. 

A seguir fui até o Museu da História Militar que fica na ex-Fortaleza de São Miguel, no alto da colina e tem um visual interessante da cidade. O museu em si não oferece grandes atrativos além de paredes cobertas por azulejos portugueses.


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Acervo do Museu da História Militar.

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Azulejos de uma das alas do Museu da História Militar, em Luanda.

Como no Brasil, a religião predominante de Angola é o catolicismo. Luanda tem igrejas muito parecidas com as de Salvador. Minha preferida foi a pequenina Nossa Senhora dos Remédios, construída em 1655.


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Igreja Nossa Senhora dos Remédios e as "zungueiras".


As "zungueiras" são uma marca de Luanda. Mesmo tendo sido proibidas de circular pela cidade vendendo seus produtos, essas mulheres guerreiras carregam cestas pesadas na cabeça com frutas, água e de tudo que se possa imaginar. Além de carregar o cesto pesado costumam levar um filho preso nas costas e outro na barriga. Controle de natalidade não é uma realidade. 


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 Zungueiras pelas ruas.


Fora do centro ficam os bairros residenciais mais abastados. É onde tem o maior shopping da cidade, Belas Shopping. Outros dois já estão sendo construídos. 


Aproveite que está nessa região para conhecer o Mercado de Benfica e o Museu Nacional da Escravatura.

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Museu Nacional da Escravatura.

Dali pegue um barco e vá até a Ilha do Mussulo. É onde muitas pessoas tem casa de praia para passar os fins de semana e as férias. É o melhor lugar de Lunda para tomar sol e curtir uma praia. Mas, não espere luxo nem praias limpas. É tudo muito simples no país.



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Ilha do Mussulo.


NOS ARREDORES DE LUANDA

Se quiser ir mais longe, indico o trajeto Luanda – Cabo Ledo. No caminho, pare no Miradouro da Lua para ver as falésias coloridas. Em seguida vem a Barra do Kwanza um rio povoado de crocodilos. Logo, aparece o Parque Nacional de Kissama. Com sorte, talvez você consiga encontrar alguns animais. Eu vi apenas macacos. E então, Cabo Ledo. Repleto de praias muito selvagens, algumas procuradas pelos surfistas. O resort com melhor infra-estrutura da região se chama Carpe Dien. Pé na areia, caro e bem simples. Indico um bate-e-volta.

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Cabo Ledo.  

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Miradouro da Lua. Falésias de cores incríveis.

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O por do sol é maravilhoso. Observe essa árvore frondosa. É o Embondeiro. 


O Embondeiro ou Baobá é um símbolo de Angola. São árvores muito emblemáticas que vivem até seis mil anos. Produzem um fruto chamado mukua que serve para fazer sucos, doces e sorvetes. Parece um isopor com gosto ácido. Bem exótico. 



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Embondeiro no caminho para Cabo Ledo.


CURIOSIDADE

Casas populares vem sendo feitas para acomodar os angolanos e ao passar por elas, o tamanho me surpreendeu. São casas de 4 ou 5 quartos. Enormes. Perguntei para um amigo angolano o motivo de casas tão grandes. Ele explicou que a poligamia era uma prática comum no país e que na mesma casa costuma viver um homem com duas ou três mulheres e muitos filhos. Em períodos de guerra, muitos homens morrem e as mulheres ficam sozinhas precisando de proteção, portanto, esse é um fato comum. 

Conversando com o motorista, um rapaz de pouco mais de 20 anos, perguntei a ele quantos irmãos eram na família. Ele me disse: “Por parte de mãe somos seis, mas por parte de pai e mãe juntos somos trinta e oito”. Entendi perfeitamente o tamanho das casas.

INDICAÇÃO DE HOTEL

O Hotel Epic Sana é um oásis no centro de Luanda. Quartos novos e confortáveis. Banheiro moderno. Bom café da manhã. Serviço lastimável, apesar da simpatia e boa vontade dos funcionários. Limpeza é um problema cultural. Preço exorbitante para o que oferece, ao redor de 500 dólares.



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Quarto do hotel Epic Sana. 


INDICAÇÃO DE RESTAURANTES

Não espere muito da comida angolana. Os campos foram devastados durante a guerra civil que terminou há 13 anos. Minas terrestres ainda são uma realidade. Pecuária e agricultura não conseguiram se desenvolver ainda. Quase tudo é importado. Eles plantam apenas o ultra básico: batata-doce, mandioca, cebola, pouquíssimas verduras. Frutas também têm poucas, banana, manga, abacaxi e a nativa mukua. Usam muito óleo de palma ou dendê e tem hábitos da culinária portuguesa. Tome muito cuidado com a água. 



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Nas refeições, peixes e frutos do mar são sempre a melhor opção em Luanda.

Indico os seguintes restaurantes:

Cais de 4. Fica na Ilha de Angola. É considerado um dos melhores da cidade. Gostei do visual do restaurante. Numa área aberta virado para a orla de Luanda.

Veneza. Restaurante português. Bom bacalhau. Gostei do bacalhau assado com batata-doce.

La Vigia. Restaurante muito simples. Tem peixe fresco assado na brasa. A lula, que eles chamam de choco, também é deliciosa.

Vitrúvio. Restaurante italiano do hotel Epic Sana.

LÍNGUA NACIONAL

Além do português eles falam o Kimbundu em Luanda e outros 17 dialetos nas demais províncias de Angola.

MOEDA

Kwanza. 1 dólar vale ao redor de 150 kwanzas (dezembro/2015).

FUSO HORÁRIO

São 3 horas a frente do Brasil.

DOCUMENTOS NECESSÁRIOS

É necessário visto para entrar em Angola. O visto só é realizado mediante a apresentação de uma carta-convite. O turismo não é uma prática comum em Angola. Além disso, eles solicitam Certificado Internacional de Febre Amarela

COMO CHEGAR

Há vôos regulares da TAAG do Brasil para Luanda e da TAP de Lisboa para Luanda.

OUTROS LUGARES PARA VISITAR

Cachoeiras de Kalandula. São 5 horas de carro por estradas bem ruins. Os hotéis na região são fracos e muito caros e é preciso levar alimentos.

Praias de Benguela, ao sul de Luanda. Dá para ir de avião. Dizem que tem boa infra-estrutura.

Parque Nacional de Iona na divisa com a Namíbia, ao sul de Luanda. Não tem hotéis. É preciso acampar. 

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 Parque Nacional de Iona. 


Em Angola chorei e sorri. Vi um povo sofrido tentando levar a vida de forma alegre e bem humorada, cantando e dançando. Vi o reflexo das nossas raízes na colonização portuguesa, no idioma, na culinária, na ginga, na cultura, no jeitão descompromissado de encarar a vida, na religião, na arquitetura e infelizmente no abismo social entre ricos e pobres. Me entristeci de ver tantas favelas. Mutilados de guerra. Fome por toda parte. Condições de vida desumanas embaladas pela loucura da guerra. É um país de realidade tão dura que faz as lágrimas brotarem. Carimbar o passaporte em Angola não é exatamente uma experiência turística, mas uma experiência de vida.