Como ocorreu a transição da economia estatal da Rússia para a economia de mercado?

Um fato espetacular marcou o fim do século XX: o colapso e a desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e uma radical transição ao capitalismo. No início do novo século, a Rússia passou por uma nova mudança, com um projeto nacional de reconstrução econômica e poder político. Tal traje- tória vem fazendo da Rússia um protagonista no cenário internacional.
O presente texto está elaborado em quatro seções, além desta breve introdução (a seção 2, A economia política da transição ao capitalismo; a seção 3, Putin e a reconstrução do Estado russo; a seção 4, O desenvolvimentismo em meio à abundância de recursos naturais; e a seção 5, as Considerações finais) e busca resumir os movimentos principais desta dupla transição. A despeito de seu escopo eminentemente histórico, exploram-se neste trabalho as conexões entre desenvolvimento econômico, Estado e poder político, objeto essencial da ciência política e da economia política clássica e que, tardiamente, vem se afirmando com mais presença na literatura contemporânea sobre as trajetórias comparadas de desenvolvimento econômico.

Com a ascensão ao poder do partido bolchevique, após a Revolução Socialista na Rússia, em outubro de 1917, os revolucionários adotaram medidas que visavam à nacionalização da economia. Assim, o governo russo estava nas mãos de Lênin, o principal líder bolchevique. Em março de 1921, Lênin adotou a implantação da NEP (Nova Política Econômica) a fim de reestruturar a economia e acabar com as desigualdades sociais, a fome e a miséria na Rússia. O objetivo deste texto será abordar a Nova Política Econômica e suas principais consequências para a Rússia socialista.

Após o término da guerra civil, em 1921, a Rússia estava com a economia esfacelada. A busca por alternativas para melhorar a economia russa era o principal assunto na pauta dos governantes. Para implantar a NEP, o governo russo permitiu a aplicação de práticas capitalistas, admitindo a entrada de capitais estrangeiros que financiaram a fundação de empresas privadas no setor do comércio varejista. O comércio atacadista era administrado pelo Estado e seu principal foco era a criação de cooperativas que desempenhariam as atividades comerciais tanto no âmbito varejista quanto no atacadista.

No campo, a política agrária foi reavaliada, crescentes cooperativas agrícolas foram formadas e camponeses apoderaram-se das terras que antes pertenciam à nobreza (durante a revolução, vários camponeses enriqueceram e passaram a alugar novas terras). A NEP proibiu a nacionalização das indústrias nas cidades e somente após a deliberação da administração superior é que as fábricas poderiam ser nacionalizadas.

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A NEP isentou a população das cidades de prestar serviços obrigatórios, a livre circulação da mão de obra foi permitida, suprimiu-se o pagamento salarial igualitário e buscou-se a correlação entre o salário e a produção.

Outras mudanças estipuladas pela NEP recaíram diretamente sobre a população, como a retirada da água, da moradia e da eletricidade gratuitas, ganhos que a sociedade teve no início da revolução. Outros serviços gratuitos prestados à sociedade que o governo retirou foram os transportes, os correios e os jornais. Muitos críticos da Revolução Russa, como o sociólogo Maurício Tragtenberg (1929-1998), questionaram os rumos e os delineamentos da política econômica russa. Para o sociólogo, a Revolução Socialista na Rússia se transformou em um “Capitalismo de Estado” com a implantação da NEP, ou seja, o Estado nacionalizou as indústrias, os bancos e transformou-os em estatais burocráticas controladas pela máquina do Estado.

Leandro Carvalho
Mestre em História

"Precisamos de milhões de proprietários, não de um punhado de milionários", disse, em 1992, o primeiro presidente russo, Boris Iéltsin, em discurso em que explicava à população o propósito da privatização.

No final de 1991, o país estava à beira da falência. A economia planificada soviética provou ser totalmente ineficiente, o governo não tinha dinheiro suficiente para manter o funcionamento das empresas e pagar os salários. A moeda russa se desvalorizava rapidamente: em 1991, a taxa de inflação foi de 160% e, em 1992, de 2,508,8%. Para salvar o país e criar um novo modelo econômico, acreditava-se necessário realizar a transição para a economia de mercado livre.

Como ocorreu a transição da economia estatal da Rússia para a economia de mercado?

Anatóli Tchubais.

Valentin Sóbolev/TASS

“As reservas cambiais estavam a zero, não havia meios não apenas para a compra de grãos, mas até para pagar o frete dos navios para sua entrega. Os estoques de grãos, de acordo com previsões otimistas, eram suficientes até cerca de fevereiro ou março de 1992”, escreveram Anatóli Tchubais e Egor Gaidar no livro “A evolução na história moderna da Rússia”. Os dois foram os principais ideólogos das reformas econômicas russo-soviéticas.

Privatização rápida

A liderança do país considerou três modelos de privatização. O modelo britânico, ou seja, de venda de grandes empresas, principalmente de baixo lucro, a preços abaixo dos preços de mercado, parecia muito longo e poderia levar mais de 20 anos. O governo rejeitou essa opção já que, além de objetivos econômicos, a privatização também buscava interesses políticos, ou seja, romper com o passado comunista o mais rápido possível.

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No início dos anos 1990 qualquer russo podia adquirir ações de grandes empresas a preço de banana.

Ígor Zôtin/TASS

Anatóli Tchubais, presidente do Comitê Estatal Russo para Gestão de Propriedades Estatais na época, disse em uma entrevista na televisão em 2010 que "a privatização na Rússia antes de 1997 não era um processo econômico. Ela resolveu a tarefa principal: acabar com o comunismo".

O segundo modelo de privatização envolveu a abertura de depósitos nominais no maior banco estatal russo, o Sberbank. Mas, tecnicamente, ele era difícil de implementar devido ao baixo nível de desenvolvimento do sistema bancário na época e à grande população.

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Iéltsin recebe cheque de privatização em 1993.

Dmítri Donskoi/Sputnik

O governo escolheu o modelo tcheco, considerado o mais rápido, ou seja, o de privatização por meio da distribuição de vouchers que poderiam ser trocados por ações de empresas estatais, vendidos ou doados. Mas, ao contrário da República Tcheca, os vouchers da Rússia não eram nominais.

Como ocorreu a privatização

Em 14 de agosto de 1992, o presidente Boris Iéltsin assinou um decreto sobre a distribuição de vouchers à população. Em teoria, qualquer russo poderia se tornar proprietário de uma parte de uma grande empresa. Por 25 rublos (dinheiro insignificante na época: por exemplo, 20 ovos custavam 20 rublos no início de 1992), qualquer russo poderia receber um cheque de privatização (voucher) com valor nominal de 10 mil rublos.

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Leilão de ações na fábrica de confeitos Bolchevique, 1992.

Aleksêi Boitsov/Sputnik

O custo da propriedade estatal sujeita à privatização, na época, era de 1,4 trilhão de rublos. O país iniciou a emissão de 140 milhões de vouchers. Todo cidadão do país tinha direito a um voucher.

Grandes empresas industriais e agrícolas (fazendas coletivas, fazendas estatais), terrenos e conjuntos habitacionais foram submetidas à privatização. Esses ativos estatais foram transformados em sociedades anônimas. Em alguns setores, como, por exemplo, subsolo, recursos florestais, plataformas continentais, gasodutos, vias públicas, a privatização foi proibida. Com o tempo, a lista de empresas e indústrias se expandiu.

Como ocorreu a transição da economia estatal da Rússia para a economia de mercado?

Leilão na fábrica de automóveis ZIL, 1993.

Robert Netelev/TASS

Na verdade, era problemático avaliar o valor real da propriedade. Para tanto, era necessário trazer objetos para a bolsa de valores, o que era impossível.

“Em condições de alta inflação e instabilidade macroeconômica, o preço dos ativos privatizados era subestimado, as receitas orçamentárias da privatização eram insignificantes e isso, por sua vez, reduzia a legitimidade da privatização”, explica o ex-economista-chefe do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento, Serguêi Guriev.

Voucher, um bilhete de loteria

Como ocorreu a transição da economia estatal da Rússia para a economia de mercado?

Fábrica de confeitos Bolchevique, 1992.

Aleksêi Boitsov/Sputnik

Todos os que compraram um voucher receberam um lembrete: “Um cheque de privatização é uma chance de sucesso que é dada a todos. Lembre-se: quem compra o cheque amplia suas oportunidades, quem vende perde suas perspectivas!"

O voucher podia ser usado para comprar ações de qualquer empresa russa que estivesse sendo privatizada. Os preços das ações eram determinado em leilões. Além disso, funcionários das empresas podiam comprar suas ações com desconto. No total, de dezembro de 1992 a fevereiro de 1994, foram realizados 9.342 leilões, nos quais foram utilizados 52 milhões de vouchers.

Como ocorreu a transição da economia estatal da Rússia para a economia de mercado?

Gazprom, primeiro conselho anual de proprietários de ações, 1995.

gazprom.ru

Os russos que adquiriram ações de grandes empresas que trabalhavam com exportação se saíram melhor que os outros. A situação das empresas que trabalhavam com o mercado interno era muito mais difícil. A população não tinha dinheiro para comprar seus produtos e muitas empresas faliram.

As ações da maior empresa de gás russa, a Gazprom, acabaram se mostrando investimentos mais rentáveis. Suas ações, porém, eram cotadas de forma diferente, dependendo da região. Na região de Perm, um voucher permitia comprar seis mil ações da Gazprom; em Moscou, apenas 30 ações. Enquanto alguns trocavam vouchers por ações da gigante energética, outros os vendiam ou trocavam por alimentos, vodca e eletrodomésticos.

Oligarcas: como surgiram?

No início da privatização, os diretores de grandes fábricas soviéticas, conhecidos como "diretores vermelhos", que ganharam poder nos tempos soviéticos, tinham uma vantagem. Eles encorajavam os trabalhadores a vender suas ações e podiam até mesmo reter os salários para que fossem forçados a concordar na venda.

Como resultado, os "diretores vermelhos" conseguiram monopolizar as grandes empresas. Mas, como não tinham competência para trabalhar em condições de mercado, muitos deles perderam seus poderes. Com o apoio de círculos criminosos, as empresas foram transferidas para grupos financeiros.

Além disso, começaram a surgir fundos de cheques em todo o país. Neles, os cidadãos podiam entregar seus vouchers e receber dividendos. Mas muitos nunca os receberam. Dos 646 fundos, apenas 136 pagaram dividendos — os outros simplesmente cessaram sua existência.

Como resultado, no final de 1994, entre 60 e 70 por cento das empresas de comércio, alimentação pública e serviços ao consumidor foram privatizadas. Os vouchers tiveram o seguinte destino: 50% dos proprietários investiram seus vouchers nas empresas em que trabalhavam, cerca de 25% dos vouchers foram para fundos de cheques e 25% foram vendidos.

O maior golpe para a legitimidade da privatização foram os leilões de empréstimos por ações realizados a partir de 1995. O governo contraiu empréstimos garantidos por participações estatais de ações de grandes empresas, mas não os pagou. Essas ações foram transferidas aos credores, que se tornaram proprietários das maiores empresas da Rússia a preços abaixo do mercado.

“O único estrato social pronto a apoiar Iéltsin naquela época era o grande empresariado. Por meio de seus serviços, os empresários queriam obter pedaços de propriedade estatal e influenciar diretamente a política. Foi assim que surgiram os oligarcas na Rússia”, escreveu Evguêni Iássin, ministro da Economia russo entre 1994 e 1997.

De acordo com a revista Forbes, 66% dos bilionários russos receberam sua fortuna durante a privatização.

Recepção por parte da população

Nos primeiros anos, a população recebeu de forma neutra a privatização. A socióloga Tatiana Zaslávskaia escreveu, em 1995: “Quanto ao comportamento dos grupos sociais de massa, a privatização ainda não teve um impacto significativo sobre eles."

As atitudes mudaram ao longo dos anos. Uma pesquisa realizada pelo centro de pesquisas de opinião pública VTsIOM, em 2017, por ocasião do 25º aniversário da privatização, mostrou que 73% da população avaliava seus resultados negativamente.

Houve algum efeito positivo na privatização?

Apesar das críticas à privatização, ela mudou radicalmente a economia do país. Doutor em ciências econômicas, Serguêi Orlov, acredita que a privatização tenha sido um passo necessário para a formação de uma mentalidade econômica “correta” e de um mercado “livre e competitivo”.

Segundo ele, a privatização criou bases para o comércio moderno, o setor de serviços, o complexo agroindustrial e a indústria da construção, que vêm se desenvolvendo ativamente desde o final da década de 1990.

LEIA TAMBÉM: Os 3 principais fatores para a queda da URSS

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O que ocorreu na transição econômica na Rússia?

Uma nova classe capitalista surgiu e se apropriou da maior parte da riqueza do país. Tudo isso levou a Rússia ao colapso econômico, simbolizado pela crise financeira de 1998. Estuda-se o parêntese heterodoxo do governo Primakov, entre 1998 e 1999, que reergueu a economia.

O que a Rússia fez para consolidar sua economia de mercado?

A Economia da Rússia é profundamente marcada não tão somente pela herança da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), da qual herdou 62% do potencial produtivo, mas também pelas reformas neoliberais praticadas no país a partir da década de 1990.

Em que momento a economia russa realmente passou para o controle do Estado?

Em março de 1921, Lênin adotou a implantação da NEP (Nova Política Econômica) a fim de reestruturar a economia e acabar com as desigualdades sociais, a fome e a miséria na Rússia.

Como ficou a economia da Rússia?

A Rússia cresceu 4,8% em 2021 depois de cair 2,7% em 2020, o 1º ano da pandemia de covid-19. Sergei Guriev declarou que as sanções sobre o petróleo russo têm um efeito defasado no país e o maior impacto será sentido no próximo ano.