Introdução1É interessante o fato de que as cidades brasileiras, especialmente a cidade do Rio de Janeiro, têm uma rica história a respeito de suas moradas populares. Apesar de boa parte de sua população não dispor formalmente de acesso à propriedade privada, suas estratégias de sobrevivência no meio urbano levaram ao desenvolvimento de diversas formas de habitar a cidade. Show 2É notável que há mais de cem anos as favelas são as moradas populares mais características do espaço urbano carioca, disseminando-se para as mais diversas cidades brasileiras ao longo do século XX. 3Resultantes de uma urbanização apoiada no desenvolvimento desigual, essas favelas formam marcas que expõem o convívio contraditório entre a riqueza e a pobreza no assim chamado tecido sociopolítico urbano fragmentado (SOUZA, 2005), incluindo os conflitos resultantes e toda a riqueza cultural dessa forma de ocupação do espaço. 4Desde Perlman (1977) até Valladares (2005), diversos estudiosos têm se debruçado sobre o « problema favela ». A designação da favela como um problema constitui a chave para entender como o Estado, em suas múltiplas dimensões, aborda os territórios favelados, implementando políticas públicas na favela a partir da premissa do controle, seja por meio da coerção ou do consenso, no sentido gramsciano. 5A criminalização das moradas populares urbanas é, há tempos, a principal forma de relação entre o Estado e a favela no Rio de Janeiro. Desde a ideologia higienista e a campanha de demolição de cortiços no final do século XIX até os dias atuais, em que a forma mais evidente de representação negativa advém da « metáfora da guerra » contra as drogas (LEITE, 2014), o discurso sobre as diferentes formas de moradia popular tem buscado deslegitimar e estigmatizar a forma como pobres – em grande parte negros e imigrantes – organizam suas estratégias de habitação na cidade. 6O objetivo aqui é tentar entender como a representação negativa da favela nasceu e evoluiu ao longo do tempo no Rio de Janeiro. Argumenta-se que a representação da favela como problema apoia-se há muito tempo na estigmatização dos moradores de favela, presente de forma acentuada no imaginário social carioca. 7O processo de estigmatização das favelas e de seus moradores – tão caro à formação urbana do Rio de Janeiro – é o assunto central que abordaremos a partir de agora, considerando suas origens e seu percurso, até chegar no atual contexto metropolitano carioca. A gênese da estigmatização da favela e do favelado8Em seu artigo sobre o estigma como política de Estado, Mário Sérgio Brum descreve o modo como se dá a estigmatização da favela:
9De fato, a própria vivência do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro possibilita notar a presença, no imaginário social carioca, dos estereótipos em relação aos moradores de favela. Categorias gerais são verbalizadas diariamente nos veículos de comunicação e pela própria população, geralmente referindo-se à favela negativamente, seja por meio do discurso da ausência, de um lado, seja pela relação que se faz da imagem do favelado com o « mundo do crime ». Embora a dimensão da cultura popular seja ativada e mencionada em momentos de festividades, a estigmatização se faz presente de várias formas no cotidiano. 10Sabendo que as favelas se generalizaram no Rio de Janeiro apenas ao longo da primeira metade do século XX, e que a ação estatal foi hostil a esse tipo de habitação popular desde seu início, busca-se entender de que processos e trajetórias da urbanização carioca decorre a representação negativa das favelas e do ser favelado e de como sua estigmatização influenciou as políticas públicas para esses territórios. 11Como bem adverte Campos (2005), a criminalização das moradas populares antecede a existência da favela no cenário urbano do Rio de Janeiro. Sua origem é a repressão imposta aos quilombos rurais e periurbanos, perseguindo as populações de negros escravizados que territorializavam sua resistência ao regime escravocrata. 12Mesmo durante e após o período abolicionista, como observa Campos (2005), a negação do acesso à propriedade e ao mercado formal de trabalho na cidade para a maioria extrema dos negros induziu a massa urbana negra a habitar aquela que foi a principal morada popular urbana no Rio de Janeiro antes das favelas: os cortiços – moradias coletivas, de pátio compartilhado, onde viviam aqueles que podiam alugar um cômodo (ver figura 1), tal como descreve Aluísio de Azevedo em sua obra seminal « O Cortiço ». FIGURA 1 – Cortiço situado na área central do Rio de Janeiro, na primeira década do século XX Fonte: <http://botaabaixopp.blogspot.com/2011/11 13Campos (2005) ainda demonstra como a criminalização e a destruição dos cortiços no Rio de Janeiro (cujo ápice foi o período do « bota abaixo » de Pereira Passos), somadas ao excedente de mão de obra formado pela multidão de ex-escravos e de imigrantes, provocou um caos de habitação que fez das favelas antes uma solução do que um problema:
14O autor ainda comenta sobre a representação negativa dos territórios populares antes mesmo da abolição da escravatura, o que aqui se supõe ser o germe da estigmatização da favela:
15Conforme lembram Valladares (2005) e Campos (2005), embora se tenham generalizado apenas no século XX, as favelas já habitavam residualmente o cenário urbano do Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX, concentrando-se prioritariamente na área central da cidade. 16A autora aponta:
17Como é possível perceber, a gênese das favelas no Rio de Janeiro é bastante complexa. Suas origens são diversas e, até hoje, embora o mito de origem protagonizado pelo Morro da Favella esteja presente no imaginário carioca, não é possível confirmar com exatidão qual teria sido a primeira favela da cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, diversos autores concordam que a empreitada contra os cortiços, a promessa de concessão de terras a ex-combatentes da Guerra de Canudos e a libertação da massa da população negra do jugo da escravidão tiveram importantes papéis para o surgimento de favelas na cidade do Rio de Janeiro. 18Sobre o papel específico da destruição dos cortiços, Maurício de Almeida Abreu destaca que « a destruição de grande número de cortiços fez, pois, da favela, a única alternativa que restou a uma população pobre, que precisava residir próximo ao local de emprego » (ABREU, 2013). O autor ainda destaca o crescimento da população urbana, atraída pela industrialização e pelo crescimento da construção civil, como um fator primordial pra compreender o surgimento de um número cada vez maior de favelas na primeira metade do século XX (ABREU, 2013). 19É importante ressaltar que, além da inserção precária da população negra no meio urbano e do crescimento da população imigrante, a concentração da oferta de trabalho e diversas formas de « biscate » na área central da cidade, bem como a incapacidade da população pobre de pagar aluguéis ou adquirir terrenos legalmente, levaram uma parcela considerável da população urbana a construir habitações improvisadas em terrenos baldios nas encostas localizadas no centro da cidade (PERLMAN, 1977). 20Pandolfi & Grynszpan (2002) afirmam que a criminalização das moradas em favelas ocorreu a partir da disseminação da visão das favelas como focos de insalubridades, doenças infectocontagiosas e epidemias, encarando a favelização como uma questão de natureza patológica, e clamando por políticas públicas que sanassem o « problema ». Valladares, por sua vez, infere que a representação negativa do favelado e a abordagem da favela como um « problema » antecede sua generalização na cidade do Rio de Janeiro, tendo na política higienista – instrumento público utilizado também contra os cortiços – o seu principal ponto de apoio. A autora recorda:
21A figura 2, publicada nos jornais da época, ilustra a abordagem da favela expressa pela política higienista já nos primeiros anos do século XX. FIGURA 2 – Representação de Oswaldo Cruz utilizando a Delegacia de Higiene para retirar moradores do Morro da Favella (atual Providência), retratados como piolhos.
Fonte: Reproduzido de <https://www.tecmundo.com.br/ciencia/128341-super-trunfo-tecmundo-1-oswaldo-cruz-inimigo> acessado em 15/10/2018)1 22Desde a gênese da favela, sua estigmatização se deu, de um lado, a partir da representação dos territórios favelados como áreas insalubres, caóticas e desordeiras, ameaçadoras da ordem e dos valores expressos pela « cidade formal »; e, de outro, pela representação de seus moradores como vagabundos, ladrões, malandros e bandidos perigosos em potencial, ameaçando os « cidadãos comuns » da cidade. 23Tendo sua origem na criminalização das moradas populares antecedentes, a estigmatização do favelado, conforme expresso na literatura de referência, esteve presente nas mais diversas políticas públicas implementadas nas favelas cariocas. 24Pandolfi e Grynszpan (2002), Valladares (2005) e Perlman (1977) expõem diversas políticas públicas implementadas ao longo dos mais de cem anos de favelas no Rio de Janeiro, apontando a alternância – às vezes a coexistência – entre políticas remocionistas e políticas públicas de urbanização de favelas, estabelecendo, muitas vezes, relações de cooptação ou de coerção com instituições locais, especialmente com um número considerável de associações de moradores de favela. 25Algumas políticas, como os parques proletários da Era Vargas, tinham como objetivo « civilizar » o favelado, presenteando-o com um lar provisório e promovendo reuniões cujo objetivo seria ensinar regras de comportamento aos moradores de favela (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2002). Outras políticas, como o Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (SERFHA), tinham como objetivo a introdução de melhorias urbanas, mas submetiam politicamente as associações de moradores de favelas e estabeleciam uma relação caracterizada pelo “controle negociado” (RODRIGUES, 2015). 26A ditadura civil-militar, por sua vez, introduziu uma política remocionista em grande escala, eliminando diversas favelas a partir de uma deficiente política habitacional apoiada no Banco Nacional da Habitação (BNH) e na Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana (CHISAM), enquanto a redemocratização brasileira dos anos 1980/90 deu origem a uma série de políticas de expansão de serviços urbanos em favelas do Rio de Janeiro (BURGOS, et al., 2011). 27Segundo Brum, desde seu início, as políticas públicas em favelas, de um modo ou de outro, tiveram como objetivo o controle desta forma popular de habitar na cidade. O autor conclui que « essas sucessivas políticas do Estado para as favelas tiveram em comum a permanente tentativa de controle e normalização do espaço urbano e de suas camadas mais pobres » (BRUM, 2010, p.100). 28A territorialização de grupos de narcotraficantes de varejo em um número considerável de favelas cariocas a partir da década de 1980 ocasionou, conforme indica Leite (2014), uma atualização da representação negativa da favela, dando novos contornos à estigmatização do favelado. Antes identificados como facilmente atraídos pelas « ideologias subversivas », passaram a ser vistos como traficantes ou cúmplices das facções de traficantes. A grande imprensa, políticos e agentes públicos de segurança passam a tratar o conflito como uma suposta guerra – e ainda o tratam assim. A « metáfora da guerra » passa dar legitimidade discursiva ao modelo de segurança pública instrumentalizado para o confronto ostensivo entre policiais e traficantes de varejo, com elevados custos a respeito dos direitos humanos fundamentais (LEITE, 2014) 29A democratização expressa na favela pela rearticulação da Federação de Associações de Moradores de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), a implantação de políticas públicas visando à ampliação do acesso aos serviços urbanos básicos, de um lado, e o agravamento do conflito envolvendo narcotraficantes de varejo e policiais, de outro, expõem um paradoxo indicado por (BURGOS, et al., 2011), no qual ao mesmo tempo em que moradores de favelas puderam usufruir de políticas como o programa Favela-Bairro – obras de pavimentação de ruas, iluminação pública, construção de creches, etc. – ou o Proface, programa da CEDAE para ampliar o acesso ao saneamento básico em favelas, os mesmos moradores de favela passaram a conviver com conflitos diários, tendo seu direito à vida (bem como outras liberdades civis) ameaçado. 30As violações de direitos fundamentais, a incapacidade de reduzir a venda e o consumo de drogas e a corrupção policial e política envolvendo o narcotráfico levaram estudiosos da segurança pública e movimentos sociais organizados por moradores de favelas a introduzir na agenda política do Rio de Janeiro (e nacional) a formulação de outras modalidades de intervenção dos órgãos de segurança pública em favelas cariocas. 31A busca por uma forma de policiamento comunitário sem a reformulação das instituições policiais – e da segurança pública em geral – culminou na territorialização permanente de policiais militares em favelas cariocas, primeiro com o programa Mutirão pela Paz, em 1999, depois por meio dos Grupamentos de Policiamento de Áreas Especiais (GPAEs) e, desde 2008, através das Unidades de Polícia Pacificadora. Entretanto, tal como apontam (BURGOS et al, 2011) e Valle (2016), embora as políticas de policiamento permanente implementadas tenham reduzido consideravelmente o número de homicídios em diversas favelas afetadas, conflitos entre moradores e policiais demonstram que tais políticas têm representado novos desenhos no interior de velhas e rígidas instituições de segurança. 32Como é possível notar, a natureza da intervenção estatal na favela tem variado de acordo com o contexto histórico e político, mas também depende de quais favelas estudamos e qual seu papel no espaço urbano do Rio de Janeiro. Entretanto, é possível afirmar que, seja por meio dos aparelhos de repressão ou por meio dos aparelhos da Sociedade Civil (GRAMSCI, 2001), o Estado estabelece uma relação através da qual busca controlar os territórios favelados, coexistindo a coerção e o consenso simultaneamente, ainda que de diferentes formas e com intensidades distintas. No entanto, os moradores de favela negociam sua relação com o Estado e as políticas públicas, não sendo possível encará-los como receptores passivos das ações estatais e de outros agentes da arena. 33A relação entre Estado e favela é o tema sobre o qual teorizaremos de forma direta, aproveitando os conflitos e os diversos fenômenos aqui já mencionados para expor a natureza de tal relação, além dos instrumentos utilizados tanto pelo Estado como pela favela para disputar tal relação em busca de seus interesses. É importante enfatizar que o território será tratado aqui como um conceito fundamental para a compreensão da relação entre o Estado e as favelas, entendendo-o como um meio de ligação entre ambos e, ao mesmo tempo, indissociável de um ou de outro. Estado e favela: controle e negociação34Já se sabe que o Estado, pelo menos em sua forma moderna, exerce seu controle social de duas maneiras complementares entre si e, ao mesmo tempo, conflitantes: a repressão e a legitimação. O Estado, arena disputada desigualmente pelas classes sociais, para garantir o arranjo das relações de poder que o compõem, busca o consentimento da sociedade ou de setores da sociedade (GRAMSCI apud COUTINHO, 2007, p.123). Quando tensões ameaçam aquele arranjo, o Estado utiliza seus aparelhos repressivos para conservar as relações de poder como estão. 35O esquema exposto acima tem importância na medida em que descreve simplificadamente as dimensões da dinâmica do Estado. Entretanto, perde capacidade analítica se não considerar a complexidade de intencionalidades expressa pelos vários órgãos e instituições estatais, cada instituição agindo diferentemente, em diversas escalas e de forma variada de acordo com o locus de atuação, dependendo também das trajetórias pessoais dos agentes públicos e da relação que estabelecem localmente. 36Na verdade, repressão e a legitimação ocorrem simultaneamente e de forma conectada, tendo em vista que o Estado, ao mesmo tempo que busca a conservação de arranjos de poder, constitui uma arena de negociação e acordos, num jogo político que tem no consentimento a chave para a sua legitimação e para a manutenção da « ordem ». 37O consentimento dos grupos que são objeto das ações estatais depende de uma trama complexa de relações e subjetividades que envolvem níveis de confiança e as intencionalidades dos atores locais. Entretanto, também é de fundamental importância para a legitimação das políticas estatais a capacidade dos moradores de favelas e comunidades locais de incorporar ideologias dominantes em seus discursos e significações de mundo. 38A propagação dos discursos que compõem a estigmatização da favela cumpre um papel crucial para o Estado e as classes dominantes na implementação de políticas e ações nas favelas. Essa capacidade de absorção dos valores dominantes é definida por Bourdieu (2003) como as condições sociais de produção de significados. Isto demonstra que a estigmatização não é unilateral e que é compartilhada por diversos atores, inclusive pelos próprios favelados (BOURDIEU apud BRUM, 2010, p.99). 39A circulação e a afirmação dos valores que predominam em um determinado território (ou em diversos) ocorrem através do senso comum. É um conjunto de movimentos bastante complexos, em que ideologias são produzidas e reproduzidas, valores são reforçados ou ressignificados. Nessa teia de subjetividades, antigas crenças populares são recuperadas e o senso comum é atualizado através daquilo a que se pode chamar de bom senso, ou seja, a ressignificação de valores que compõem as visões de mundo produzidas pelo senso comum (GRAMSCI apud SIMIONATTO, 1999, p.80). 40Conforme indica Simionatto, os sujeitos produzem significados acerca de suas experiências sociais e suas próprias ações.
41Ainda sobre a absorção de valores comprometidos com a representação negativa da favela por seus próprios moradores, Janice Perlman aponta que « Com maior frequência, os favelados absorvem e internalizam a descrição negativa que deles é feita, e culpam a própria ignorância, preguiça e desvalia pela falta de 'sucesso' » (PERLMAN, 1977, p. 293). 42Participam da arena em disputa diversos atores, estatais ou não, envolvendo ações de controle, seja por meio da coerção ou do consenso, legitimando as mais variadas ações, mas buscando legitimar prioritariamente as ações estatais, o que depende da absorção de determinados valores morais pela população em geral, e especialmente pelos moradores de favelas e outras áreas populares estigmatizadas. 43Assim, para Gramsci (2001), o Estado é a sua dimensão coercitiva – a Sociedade Política – mais a sua dimensão consensual – a Sociedade Civil. A Sociedade Política, ou Estado-coerção (COUTINHO, 2007), é formada pelos aparelhos repressivos, sendo eles as instituições policiais e as forças armadas, cujo objetivo é garantir o uso exclusivo da força pelo Estado. A Sociedade Civil, por sua vez, é formada pelos aparelhos privados de hegemonia – partidos políticos, fóruns políticos, sindicatos, associações de moradores, escolas, igrejas, associações empresariais etc. – nos quais há o jogo político propriamente dito, e onde são propagados os valores culturais em disputa. Esses aparelhos privados de hegemonia são instituições com relativa autonomia e que cumprem um papel decisivo na formação do que Gramsci chama de consenso, o consentimento necessário à legitimação da ordem vigente e do controle estatal. 44Nas favelas, o Estado também opera através de suas duas dimensões de controle. Ao mesmo tempo que impõe aos moradores de favelas um modelo repressivo que viola direitos fundamentais, implementa, norteado pelo « paradigma da ausência » (SILVA; BARBOSA, 2005), uma série de políticas públicas em favelas que o legitimam enquanto fornecedor de serviços urbanos básicos, geralmente estabelecendo algum nível de controle – ainda que repleto de conflitos – em sua relação com as favelas. 45Em geral, o Estado ativa seus mecanismos de controle (coerção e consenso) utilizando-se do território. Este último é concebido aqui não apenas como elemento físico, mas como uma construção social que, a partir de suas relações de poder intrínsecas, normatiza comportamentos e cria identidades. Os territórios produzem visões de mundo que influenciam ações e relações sociais em seu interior – e também acaba por influenciar seu exterior. 46A noção de território aqui se aproxima da ideia de Robert David Sack (1986), para quem o território é uma área delimitada por relações de poder por meio das quais organiza o controle sobre quem pode ou não acessá-la, afetando o comportamento social no espaço e criando uma fronteira demarcada a partir da diferenciação e da identidade. Para isto ocorrer, combinam-se área, comunicação e controle territorial (SACK, 1986). 47Sack (1986), diferencia a territorialidade humana daquela presente nos animais. Para o autor, a territorialidade social se dá a partir da tentativa de um indivíduo ou grupo de afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relações, estabelecendo controle sobre uma área geográfica. Isto difere a territorialidade humana da animal, cuja territorialidade é marcada pelo instinto. 48Partindo do pensamento de Sack, Soares e Santos (2018) destacam as especificidades da existência do território a partir da premissa do controle. Os autores estabelecem a seguinte diferenciação:
49Sack (1986) ainda elabora um quadro que inclui três efeitos ou tendências fundamentais da territorialidade, partindo de sua dimensão de controle a partir das relações de poder apoiadas no espaço geográfico. O primeiro efeito é a classificação por área, que, segundo o autor, ao não classificar por tipo, torna as relações tendencialmente impessoais. O segundo efeito é a comunicação de fronteiras, contribuindo para a organização de limites territoriais. Por fim, o terceiro é o controle do acesso (a recursos e ao território). O conjunto de efeitos da territorialidade é responsável pela identificação dos que integram determinado arranjo territorial (SACK, 1986). 50Para essa conceituação – que entende o território como uma construção social permeada pelo controle – as favelas são territórios não apenas por seus hábitos e por uma aparente coesão de valores culturais dos moradores da sua área, mas também por possuírem relações de poder que identificam quem pertence ou não àquele território, permitindo o uso de práticas de controle territorial, seja ele por parte de atores locais ou mesmo pela máquina estatal. Favelas e políticas públicas no Rio de Janeiro51Em geral, a fase de implementação das políticas públicas é precedida pela delimitação da área de interesse, considerando – em tese – as demandas, as potencialidades e os desafios do território abordado. Delimita-se um território antes mesmo na espacialização efetiva das ações do Estado, ainda no processo de formulação da política. 52Assim, o desenho de políticas públicas na favela costuma ter início sem considerar as territorialidades da favela a priori, o que geralmente cria um descompasso da política pública em relação à realidade local e suas demandas, verificada muitas vezes na distorção dos resultados da política pública na fase de implementação em relação aos objetivos iniciais apontados na fase de formulação. 53Esse conflito entre as territorialidades faveladas e a territorialização de políticas públicas é uma das principais causas de desentendimento entre agentes públicos e moradores de favela no momento de aplicação das políticas públicas. Para reduzir essa incongruência, algumas políticas públicas estimulam a incorporação de líderes comunitários e outros atores locais para intermediar o contato entre o Estado e a localidade durante a fase de implementação do projeto (LOTTA, 2012). 54Em diversos casos, os intermediários locais exercem o papel ambíguo de agentes do Estado e moradores da comunidade local. Esses agentes são denominados "burocratas do nível de rua" (LIPSKY apud LOTTA, 2012). Na interface entre os formuladores e usuários da política, esses agentes instrumentalizam sua rede de sociabilidade local para conectar a política pública às demandas comunitárias e, ao mesmo tempo, adquirem a confiança da comunidade necessária à facilitação do diálogo. Lotta explica:
55A utilização de líderes e atores locais é uma estratégia de legitimação das políticas públicas baseada na confiança que determinados atores locais possuem no interior de sua comunidade. É bastante comum já há muitas décadas que tal mediação seja feita através das associações de moradores de favelas ou mesmo de bairros da cidade formal, dependendo do contexto territorial. Como lembra Perlman (1977), tanto a política de urbanização do período populista como durante o remocionismo empreendido pela ditadura civil-militar, as associações de moradores de favelas foram alvo da cooptação estatal, seja, no primeiro caso, para estabelecer um controle paternalista, seja, no segundo, para consolidar uma relação coercitiva para impedir a resistência dos moradores das favelas removidas. 56Assim, o Estado territorializa políticas públicas e os moradores de favela mobilizam suas vivências no território, quando possível, para tensionar os representantes do Estado a desenvolverem ações de interesse(s) dos moradores. É desta forma, correlata e conflituosa, que geralmente se aplicam as políticas públicas. A favela, em escala local, tensiona os técnicos e agentes públicos a mudarem seus projetos "prontos" de acordo com as demandas da comunidade local e suas territorialidades. 57No Rio de Janeiro, problemas envolvendo a territorialização de políticas públicas que não levam adequadamente a sério o contexto local são verificados há muitas décadas. Um dos problemas recentes, apontado por Valle (2016), é a influência que o programa de urbanização de assentamentos populares (PROAP ou Favela-Bairro) sofreu dos traficantes na década de 1990. As facções intervieram de várias formas, direta e indiretamente, geralmente induzindo ou coagindo agentes públicos a alterarem os projetos iniciais para satisfazer os interesses do grupo local de narcotraficantes de varejo territorializados em diversas favelas. 58Dentre as principais alterações, ficou evidente o impedimento da realização de obras de asfaltamento e pavimentação de ruas, além da impossibilidade do alargamento de vias, para evitar a facilitação da entrada de veículos de combate ostensivo da polícia militar. Também foi relatado na época o confisco de máquinas e equipamentos públicos pelos traficantes. Conforme verificado por Cano (2012), a influência do controle exercido pelos traficantes em favelas sobre ações do Estado é bastante comum no cenário carioca. 59Outro problema das políticas públicas historicamente adotadas nas favelas cariocas, apontado por Rodrigues (2015), é a desarticulação entre órgãos e secretarias de governo quando da aplicação dos projetos. Muitos programas não definem com clareza o papel de cada órgão ou secretaria e deixam em aberto para que as próprias repartições dialoguem entre si. O problema é que há falta de interesse de algumas secretarias em assumir responsabilidades que não constam inicialmente da sua "missão institucional". 60Encontramos esse tipo de problema na tentativa mais recente de estabelecer diálogo entre moradores de favela e agentes públicos em busca de formulação de políticas públicas: o Programa UPP Social, que embora tenha organizado fóruns em algumas favelas e realizado coletas de dados em campo com equipes técnicas, esbarrou na falta de interesse e de diálogo entre as secretarias da prefeitura do Rio e, ao mesmo tempo, na falta de comunicação entre a prefeitura municipal carioca e o governo do estado do Rio de Janeiro. 61O caso do programa UPP Social, abordado por Rodrigues (2015), é um exemplo emblemático de sobreposição de tarefas de secretarias envolvidas e de desinteresse e falta de diálogo entre órgãos e secretarias. Muitos gestores sequer responderam aos relatórios da equipe de campo do UPP Social sobre as favelas, dando pouca ou nenhuma continuidade às ações implementadas no território pelos agentes do programa. 62Deve ser enfrentada pelos gestores públicos a necessidade de promover políticas que deixem claramente delineado o papel de cada órgão e secretaria no projeto, evidenciando quais instituições devem dialogar e de que maneira. Isto serve também para a relação entre os entes federativos. Em vez de restringir uma política pública a um município ou estado, seus formuladores devem procurar articulações entre as diferentes esferas de governo. Uma política reduzida a um ente federativo, a um órgão ou a uma secretaria acaba culminando em um processo de atrofia burocrática, ou seja, a redução de sua capacidade de atuação por não permitir conexão entre várias repartições públicas empenhadas na construção das políticas públicas. 63Por outro lado, vale ressaltar que qualquer política pública deveria estabelecer uma espécie de ouvidoria, um instrumento que possibilitaria à população beneficiada pela política aplicada avaliar qualitativamente os resultados das ações empenhadas para a favela ou comunidade local. Isto poderia dar resiliência à política implementada, tornando-a um projeto com capacidade de adaptação. 64Entretanto, é importante lembrar que dependendo do tipo de política pública a que nos referimos – como as políticas de segurança pública, por exemplo – seria preciso garantir a não identificação do usuário da política. Este ponto revela uma dimensão autoritária da assimetria de poder entre a favela e o Estado, o que dificulta a aplicação de um diálogo sincero e que permita que as políticas públicas sejam avaliadas – da forma mais livre possível – por moradores de favelas que anseiam pelo acesso a novos serviços urbanos e pela melhoria dos serviços já existentes. 65Tais assimetrias de poder, e tal autoritarismo, retroalimentam a estigmatização da qual eles próprios se beneficiam, culminando, muitas vezes, em conflitos entre agentes públicos e moradores de favela, criando sérios obstáculos para políticas públicas que possam garantir o acesso a direitos civis, políticos e sociais nas favelas. Considerações finais66Uma relação mais justa e democrática entre o Estado e a favela só é possível com o combate à estigmatização do favelado e à representação das favelas como territórios dominados pela marginalidade (PERLMAN, 1977). É condição para tal que as entidades da sociedade civil localizadas em favelas sejam incentivadas e desenvolvidas e que canais de diálogo entre estas e o Estado sejam produzidos democraticamente, considerando os moradores de favelas em sua dimensão política e como sujeitos coletivos. 67É importante destacar também que a escala local deve ser o locus privilegiado de formulação de políticas e ações públicas em favelas. O planejamento urbano deve considerar as mais diversas experiências de diálogo entre os territórios contemplados pelas políticas públicas e os agentes e representantes do Estado. 68A tentativa mais recente de estabelecer diálogo entre moradores de favela e agentes públicos em busca de formulação de políticas públicas, o Programa UPP Social, embora tenha organizado fóruns em algumas favelas e realizado coletas de dados em campo com equipes técnicas, esbarrou na falta de interesse e de diálogo entre as secretarias da prefeitura do Rio e, ao mesmo tempo, na falta de comunicação entre a prefeitura municipal carioca e o governo do estado do Rio de Janeiro. 69É fundamental que o Estado crie meios de diálogo democrático que possibilitem que os moradores de favela, a partir de suas realidades locais diversas, tenham ampla ingerência na produção de políticas públicas, ainda em suas fases de estudo prévio e elaboração – esse geralmente é o papel das prefeituras municipais, mas pode incluir a participação efetiva dos estados e da União. A margem de atuação das comunidades locais fica demasiadamente reduzida quando é restringida apenas à fase de implantação. 70Os moradores de favela têm direito a planejar e executar ações que visem à melhoria de seu cotidiano em conjunto com agentes públicos de diversos tipos. Tais fóruns devem fornecer também canais impessoais de comunicação que forneçam condições para que o morador possa reclamar da má prestação de serviços públicos, inclusive de problemas relacionados com a segurança pública (reclamar de arbitrariedades de policiais, etc.) e ter suas reclamações levadas às instâncias públicas decisórias. 71Outro problema a ser enfrentado pelos gestores públicos é a necessidade de promover políticas que deixem claramente delineado o papel de cada órgão e secretaria no projeto, evidenciando quais instituições devem dialogar e de que maneira. Isto serve também para a relação entre os entes federativos. Em vez de restringir uma política pública a um município ou estado, seus formuladores devem procurar articulações entre as diferentes esferas de governo. Uma política reduzida a um ente federativo, a um órgão ou a uma secretaria acaba culminando em um processo de atrofia burocrática, ou seja, a redução de sua capacidade de atuação por não permitir conexão entre várias repartições públicas. 72É importante destacar também que qualquer política pública deve estabelecer uma espécie de ouvidoria, um instrumento que possibilite à população beneficiada pela política aplicada avaliar qualitativamente os resultados das ações empenhadas para a favela ou comunidade local. Isto pode dar resiliência à política implementada, tornando-a um projeto com capacidade de adaptação. 73A última proposta que exponho é a realização de um planejamento urbano mais participativo e democrático e que inclua na projeção de ações estatais os problemas relacionados ao narcotráfico. Essa inclusão, entretanto, deve ser produto de amplo debate que envolva diversos setores da sociedade civil, mas principalmente as associações de moradores e movimentos de favela para que se busque a superação da estigmatização da população moradora de favelas. 74Como já mencionado nesta conclusão, tais proposições aqui apresentadas têm o objetivo apenas de abrir o debate sobre que ações podem ser postas em prática para tentar transformar o ineficiente e despótico modelo de segurança pública que vigora atualmente e que têm provocado graves violações dos direitos fundamentais, principalmente quando nos referimos a negros e pobres moradores da periferia. 75Mais de um século de segregação socioespacial, fragmentação territorial e estigmatização de favelas não terá solução senão com a democratização das relações e através da ampliação do acesso aos direitos fundamentais. O caminho para atingir tais objetivos, além da imprescindível luta popular, é a formulação de políticas públicas de médio e longo prazo, buscando eliminar a estigmatização e as barreiras criadas pela desigualdade social em todas as suas escalas e dimensões. 76É fundamental também encarar os moradores dos espaços segregados da cidade como sujeitos políticos, ou seja, homens e mulheres capazes de produzir alternativas justas e coletivas para resolver as mazelas de seu cotidiano, cobrando que o Estado cumpra seu papel, mas sem que deixem de ser, eles mesmos, sujeitos de seu território. 77As experiências anteriores em relação às favelas e espaços segregados nos fornecem a oportunidade de não repetir os mesmos erros e conceder aos que vivem nesses lugares as condições de buscar a forma mais digna possível de viverem suas vidas, sem que seja preciso que neguem suas raízes culturais e suas formas de construir e reproduzir seu território. |