Com relação às favelas podemos afirmar que:

Introdução

1É interessante o fato de que as cidades brasileiras, espe­cialmente a cidade do Rio de Janeiro, têm uma rica história a respeito de suas moradas po­pulares. Apesar de boa parte de sua população não dispor for­malmente de acesso à proprie­dade privada, suas estratégias de sobrevivência no meio urba­no levaram ao desenvolvimento de diversas formas de habitar a cidade.

2É notável que há mais de cem anos as favelas são as mo­radas populares mais caracterís­ticas do espaço urbano carioca, disseminando-se para as mais diversas cidades brasileiras ao longo do século XX.

3Resultantes de uma urbani­zação apoiada no desenvolvi­mento desigual, essas favelas formam marcas que expõem o convívio contraditório entre a riqueza e a pobreza no assim chamado tecido sociopolítico urbano fragmentado (SOUZA, 2005), incluindo os conflitos resultantes e toda a riqueza cul­tural dessa forma de ocupação do espaço.

4Desde Perlman (1977) até Valladares (2005), diversos estudiosos têm se debruça­do sobre o « problema favela ». A designação da favela como um problema constitui a chave para entender como o Estado, em suas múltiplas dimensões, aborda os territórios favelados, implementando políticas públi­cas na favela a partir da premis­sa do controle, seja por meio da coerção ou do consenso, no sentido gramsciano.

5A criminalização das mo­radas populares urbanas é, há tempos, a principal forma de re­lação entre o Estado e a favela no Rio de Janeiro. Desde a ide­ologia higienista e a campanha de demolição de cortiços no fi­nal do século XIX até os dias atuais, em que a forma mais evidente de representação ne­gativa advém da « metáfora da guerra » contra as drogas (LEI­TE, 2014), o discurso sobre as diferentes formas de moradia popular tem buscado deslegi­timar e estigmatizar a forma como pobres – em grande parte negros e imigrantes – organi­zam suas estratégias de habita­ção na cidade.

6O objetivo aqui é tentar en­tender como a representação negativa da favela nasceu e evoluiu ao longo do tempo no Rio de Janeiro. Argumenta-se que a representação da fave­la como problema apoia-se há muito tempo na estigmatização dos moradores de favela, pre­sente de forma acentuada no imaginário social carioca.

7O processo de estigmatiza­ção das favelas e de seus mo­radores – tão caro à formação urbana do Rio de Janeiro – é o assunto central que abordare­mos a partir de agora, conside­rando suas origens e seu percur­so, até chegar no atual contexto metropolitano carioca.

A gênese da estigmatização da favela e do favelado

8Em seu artigo sobre o estig­ma como política de Estado, Mário Sérgio Brum descreve o modo como se dá a estigmati­zação da favela:

Um possível ponto de partida é a estig­matização de uma determinada área, em que seus moradores recebem variadas acusações generalizantes sobre seu cará­ter, que passam a valer para toda a favela. Assim, os termos 'áreas de risco', 'lepras', 'berço do samba', 'outra cidade', 'céu no chão', 'áreas apartadas', foram e são usados para referir-se às favelas do Rio de Janeiro através da história (BRUM, 2010, p.98)

9De fato, a própria vivência do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro possibilita notar a presença, no imaginário social carioca, dos estereótipos em re­lação aos moradores de favela. Categorias gerais são verbali­zadas diariamente nos veículos de comunicação e pela própria população, geralmente referin­do-se à favela negativamente, seja por meio do discurso da ausência, de um lado, seja pela relação que se faz da imagem do favelado com o « mundo do crime ». Embora a dimensão da cultura popular seja ativada e mencionada em momentos de festividades, a estigmatização se faz presente de várias formas no cotidiano.

10Sabendo que as favelas se generalizaram no Rio de Janei­ro apenas ao longo da primeira metade do século XX, e que a ação estatal foi hostil a esse tipo de habitação popular desde seu início, busca-se entender de que processos e trajetórias da urba­nização carioca decorre a repre­sentação negativa das favelas e do ser favelado e de como sua estigmatização influenciou as políticas públicas para esses territórios.

11Como bem adverte Campos (2005), a criminalização das moradas populares antecede a existência da favela no cenário urbano do Rio de Janeiro. Sua origem é a repressão imposta aos quilombos rurais e periurbanos, perseguindo as populações de negros escravizados que territorializavam sua resistência ao regime escravocrata.

12Mesmo durante e após o pe­ríodo abolicionista, como obser­va Campos (2005), a negação do acesso à propriedade e ao mercado formal de trabalho na cidade para a maioria extrema dos negros induziu a massa ur­bana negra a habitar aquela que foi a principal morada popular urbana no Rio de Janeiro antes das favelas: os cortiços – mo­radias coletivas, de pátio com­partilhado, onde viviam aqueles que podiam alugar um cômodo (ver figura 1), tal como descre­ve Aluísio de Azevedo em sua obra seminal « O Cortiço ».

FIGURA 1 – Cortiço situado na área central do Rio de Janeiro, na primeira década do século XX

Com relação às favelas podemos afirmar que:

Fonte: <http://botaabaixopp.blogspot.com/​2011/​11

13Campos (2005) ainda de­monstra como a criminalização e a destruição dos cortiços no Rio de Janeiro (cujo ápice foi o período do « bota abaixo » de Pereira Passos), somadas ao ex­cedente de mão de obra forma­do pela multidão de ex-escravos e de imigrantes, provocou um caos de habitação que fez das favelas antes uma solução do que um problema:

havia uma crise habitacional e a neces­sidade de a população mais pobre morar próximo da área central da cidade, onde as oportunidades de trabalho eram maio­res. A destruição do Cabeça de Porco e de outros cortiços provocou um desloca­mento desse segmento social em direção às encostas. (CAMPOS, 2005, p.61)

14O autor ainda comenta sobre a representação negativa dos territórios populares antes mes­mo da abolição da escravatura, o que aqui se supõe ser o germe da estigmatização da favela:

O período de maior quantidade de con­cessão de alforrias (…) aconteceu entre 1870 e 1880, liberando quantidades cres­centes de trabalhadores escravos. Essa liberação causou grande preocupação às elites, que logo a associaram à formação das 'classes perigosas', pelo seu vertigi­noso aumento. (CAMPOS, 2005, p.60)

15Conforme lembram Valla­dares (2005) e Campos (2005), embora se tenham generalizado apenas no século XX, as fave­las já habitavam residualmen­te o cenário urbano do Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX, concentrando-se prioritariamente na área central da cidade.

16A autora aponta:

A ocupação do Morro da Providência data de 1897. Em 1898, o Morro Santo Antônio também atesta um processo se­melhante de favelização (…) A Quinta do Caju, a Mangueira e a Serra Morena também datam do século XIX e são todas anteriores ao Morro da Favella. O povoamento de tais zonas começou em 1881, nada provando que tenha resultado de uma ocupação ilegal. (VALLADARES, 2005, p.26)

17Como é possível perceber, a gênese das favelas no Rio de Janeiro é bastante complexa. Suas origens são diversas e, até hoje, embora o mito de origem protagonizado pelo Morro da Favella esteja presente no ima­ginário carioca, não é possível confirmar com exatidão qual teria sido a primeira favela da cidade do Rio de Janeiro. En­tretanto, diversos autores con­cordam que a empreitada contra os cortiços, a promessa de con­cessão de terras a ex-comba­tentes da Guerra de Canudos e a libertação da massa da popu­lação negra do jugo da escravi­dão tiveram importantes papéis para o surgimento de favelas na cidade do Rio de Janeiro.

18Sobre o papel específico da destruição dos cortiços, Maurício de Almeida Abreu destaca que « a destruição de grande número de cortiços fez, pois, da favela, a úni­ca alternativa que restou a uma população pobre, que precisava residir próximo ao local de em­prego » (ABREU, 2013). O autor ainda destaca o crescimento da população urbana, atraída pela in­dustrialização e pelo crescimento da construção civil, como um fa­tor primordial pra compreender o surgimento de um número cada vez maior de favelas na primeira metade do século XX (ABREU, 2013).

19É importante ressaltar que, além da inserção precária da população negra no meio urba­no e do crescimento da popula­ção imigrante, a concentração da oferta de trabalho e diver­sas formas de « biscate » na área central da cidade, bem como a incapacidade da população po­bre de pagar aluguéis ou adqui­rir terrenos legalmente, leva­ram uma parcela considerável da população urbana a construir habitações improvisadas em terrenos baldios nas encostas localizadas no centro da cidade (PERLMAN, 1977).

20Pandolfi & Grynszpan (2002) afirmam que a crimina­lização das moradas em favelas ocorreu a partir da dissemina­ção da visão das favelas como focos de insalubridades, doen­ças infectocontagiosas e epide­mias, encarando a favelização como uma questão de natureza patológica, e clamando por po­líticas públicas que sanassem o « problema ». Valladares, por sua vez, infere que a represen­tação negativa do favelado e a abordagem da favela como um « problema » antecede sua gene­ralização na cidade do Rio de Janeiro, tendo na política hi­gienista – instrumento público utilizado também contra os cor­tiços – o seu principal ponto de apoio. A autora recorda:

a 'problematização' precedeu a extensão do fenômeno ao conjunto da cidade e ocorreu enquanto o processo de faveliza­ção ainda não se havia generalizado na capital federal (…) essa problematização contou com o forte respaldo do diagnós­tico higienista aplicado à pobreza e ao cortiço, servindo este como uma das ma­trizes das primeiras representações das favelas. (VALLADARES, 2005, p.39)

21A figura 2, publicada nos jornais da época, ilustra a abor­dagem da favela expressa pela política higienista já nos pri­meiros anos do século XX.

FIGURA 2 – Representação de Oswaldo Cruz utili­zando a Delegacia de Higiene para retirar moradores do Morro da Favella (atual Providência), retratados como piolhos.

Com relação às favelas podemos afirmar que:

  • 1 Médico e cientista, Os­waldo Cruz foi nomeado, em 1903, diretor-geral da Saúde Pública pelo então p (...)

Fonte: Reproduzido de <https://www.tecmundo.com.br/​ciencia/​128341-super-trunfo-tecmundo­-1-oswaldo-cruz-inimigo> acessado em 15/10/2018)1

22Desde a gênese da favela, sua estigmatização se deu, de um lado, a partir da represen­tação dos territórios favelados como áreas insalubres, caóticas e desordeiras, ameaçadoras da ordem e dos valores expressos pela « cidade formal »; e, de ou­tro, pela representação de seus moradores como vagabundos, ladrões, malandros e bandidos perigosos em potencial, amea­çando os « cidadãos comuns » da cidade.

23Tendo sua origem na crimi­nalização das moradas popu­lares antecedentes, a estigma­tização do favelado, conforme expresso na literatura de re­ferência, esteve presente nas mais diversas políticas públicas implementadas nas favelas ca­riocas.

24Pandolfi e Grynszpan (2002), Valladares (2005) e Perlman (1977) expõem diversas políti­cas públicas implementadas ao longo dos mais de cem anos de favelas no Rio de Janeiro, apon­tando a alternância – às vezes a coexistência – entre políticas remocionistas e políticas públi­cas de urbanização de favelas, estabelecendo, muitas vezes, relações de cooptação ou de co­erção com instituições locais, especialmente com um número considerável de associações de moradores de favela.

25Algumas políticas, como os parques proletários da Era Vargas, tinham como objetivo « civilizar » o favelado, presen­teando-o com um lar provisório e promovendo reuniões cujo objetivo seria ensinar regras de comportamento aos mora­dores de favela (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2002). Outras políticas, como o Serviço Espe­cial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (SERFHA), tinham como ob­jetivo a introdução de melhorias urbanas, mas submetiam politicamente as associações de moradores de favelas e esta­beleciam uma relação caracteri­zada pelo “controle negociado” (RODRIGUES, 2015).

26A ditadura civil-militar, por sua vez, introduziu uma política remocionista em grande escala, eliminando diversas favelas a partir de uma deficiente política habitacional apoiada no Banco Nacional da Habitação (BNH) e na Coordenação de Habita­ção de Interesse Social da Área Metropolitana (CHISAM), enquanto a redemocratização brasileira dos anos 1980/90 deu origem a uma série de políticas de expansão de serviços urba­nos em favelas do Rio de Janei­ro (BURGOS, et al., 2011).

27Segundo Brum, desde seu início, as políticas públicas em favelas, de um modo ou de ou­tro, tiveram como objetivo o controle desta forma popular de habitar na cidade. O autor conclui que « essas sucessivas políticas do Estado para as fa­velas tiveram em comum a per­manente tentativa de controle e normalização do espaço urbano e de suas camadas mais pobres » (BRUM, 2010, p.100).

28A territorialização de grupos de narcotraficantes de varejo em um número considerável de favelas cariocas a partir da dé­cada de 1980 ocasionou, con­forme indica Leite (2014), uma atualização da representação negativa da favela, dando no­vos contornos à estigmatização do favelado. Antes identifica­dos como facilmente atraídos pelas « ideologias subversivas », passaram a ser vistos como tra­ficantes ou cúmplices das fac­ções de traficantes. A grande imprensa, políticos e agentes públicos de segurança passam a tratar o conflito como uma su­posta guerra – e ainda o tratam assim. A « metáfora da guerra » passa dar legitimidade discur­siva ao modelo de segurança pública instrumentalizado para o confronto ostensivo entre po­liciais e traficantes de varejo, com elevados custos a respeito dos direitos humanos funda­mentais (LEITE, 2014)

29A democratização expressa na favela pela rearticulação da Federação de Associações de Moradores de Favelas do Esta­do do Rio de Janeiro (FAFERJ), a implantação de políticas pú­blicas visando à ampliação do acesso aos serviços urbanos básicos, de um lado, e o agra­vamento do conflito envolven­do narcotraficantes de varejo e policiais, de outro, expõem um paradoxo indicado por (BUR­GOS, et al., 2011), no qual ao mesmo tempo em que morado­res de favelas puderam usufruir de políticas como o programa Favela-Bairro – obras de pavi­mentação de ruas, iluminação pública, construção de creches, etc. – ou o Proface, programa da CEDAE para ampliar o aces­so ao saneamento básico em favelas, os mesmos moradores de favela passaram a conviver com conflitos diários, tendo seu direito à vida (bem como outras liberdades civis) ameaçado.

30As violações de direitos fun­damentais, a incapacidade de reduzir a venda e o consumo de drogas e a corrupção policial e política envolvendo o narcotrá­fico levaram estudiosos da se­gurança pública e movimentos sociais organizados por mora­dores de favelas a introduzir na agenda política do Rio de Ja­neiro (e nacional) a formulação de outras modalidades de inter­venção dos órgãos de seguran­ça pública em favelas cariocas.

31A busca por uma forma de policiamento comunitário sem a reformulação das instituições policiais – e da segurança pú­blica em geral – culminou na territorialização permanente de policiais militares em fa­velas cariocas, primeiro com o programa Mutirão pela Paz, em 1999, depois por meio dos Grupamentos de Policiamento de Áreas Especiais (GPAEs) e, desde 2008, através das Uni­dades de Polícia Pacificadora. Entretanto, tal como apontam (BURGOS et al, 2011) e Valle (2016), embora as políticas de policiamento permanente im­plementadas tenham reduzido consideravelmente o número de homicídios em diversas favelas afetadas, conflitos entre mora­dores e policiais demonstram que tais políticas têm represen­tado novos desenhos no interior de velhas e rígidas instituições de segurança.

32Como é possível notar, a na­tureza da intervenção estatal na favela tem variado de acordo com o contexto histórico e po­lítico, mas também depende de quais favelas estudamos e qual seu papel no espaço urbano do Rio de Janeiro. Entretanto, é possível afirmar que, seja por meio dos aparelhos de repres­são ou por meio dos aparelhos da Sociedade Civil (GRAMS­CI, 2001), o Estado estabelece uma relação através da qual busca controlar os territórios fa­velados, coexistindo a coerção e o consenso simultaneamente, ainda que de diferentes formas e com intensidades distintas. No entanto, os moradores de fa­vela negociam sua relação com o Estado e as políticas públicas, não sendo possível encará-los como receptores passivos das ações estatais e de outros agen­tes da arena.

33A relação entre Estado e favela é o tema sobre o qual teorizaremos de forma dire­ta, aproveitando os conflitos e os diversos fenômenos aqui já mencionados para expor a na­tureza de tal relação, além dos instrumentos utilizados tanto pelo Estado como pela fave­la para disputar tal relação em busca de seus interesses. É im­portante enfatizar que o territó­rio será tratado aqui como um conceito fundamental para a compreensão da relação entre o Estado e as favelas, entenden­do-o como um meio de ligação entre ambos e, ao mesmo tem­po, indissociável de um ou de outro.

Estado e favela: controle e negociação

34Já se sabe que o Estado, pelo menos em sua forma moderna, exerce seu controle social de duas maneiras complementa­res entre si e, ao mesmo tem­po, conflitantes: a repressão e a legitimação. O Estado, arena disputada desigualmente pelas classes sociais, para garantir o arranjo das relações de poder que o compõem, busca o con­sentimento da sociedade ou de setores da sociedade (GRAMS­CI apud COUTINHO, 2007, p.123). Quando tensões ame­açam aquele arranjo, o Estado utiliza seus aparelhos repressi­vos para conservar as relações de poder como estão.

35O esquema exposto acima tem importância na medida em que descreve simplificadamen­te as dimensões da dinâmica do Estado. Entretanto, perde capa­cidade analítica se não conside­rar a complexidade de intencio­nalidades expressa pelos vários órgãos e instituições estatais, cada instituição agindo diferen­temente, em diversas escalas e de forma variada de acordo com o locus de atuação, depen­dendo também das trajetórias pessoais dos agentes públicos e da relação que estabelecem lo­calmente.

36Na verdade, repressão e a legitimação ocorrem simulta­neamente e de forma conecta­da, tendo em vista que o Esta­do, ao mesmo tempo que busca a conservação de arranjos de poder, constitui uma arena de negociação e acordos, num jogo político que tem no con­sentimento a chave para a sua legitimação e para a manuten­ção da « ordem ».

37O consentimento dos gru­pos que são objeto das ações estatais depende de uma trama complexa de relações e subjeti­vidades que envolvem níveis de confiança e as intencionalida­des dos atores locais. Entretan­to, também é de fundamental importância para a legitimação das políticas estatais a capaci­dade dos moradores de favelas e comunidades locais de incor­porar ideologias dominantes em seus discursos e significa­ções de mundo.

38A propagação dos discursos que compõem a estigmatização da favela cumpre um papel cru­cial para o Estado e as classes dominantes na implementação de políticas e ações nas fave­las. Essa capacidade de absor­ção dos valores dominantes é definida por Bourdieu (2003) como as condições sociais de produção de significados. Isto demonstra que a estigmatização não é unilateral e que é com­partilhada por diversos atores, inclusive pelos próprios favela­dos (BOURDIEU apud BRUM, 2010, p.99).

39A circulação e a afirmação dos valores que predominam em um determinado territó­rio (ou em diversos) ocorrem através do senso comum. É um conjunto de movimentos bas­tante complexos, em que ideo­logias são produzidas e repro­duzidas, valores são reforçados ou ressignificados. Nessa teia de subjetividades, antigas cren­ças populares são recuperadas e o senso comum é atualizado através daquilo a que se pode chamar de bom senso, ou seja, a ressignificação de valores que compõem as visões de mundo produzidas pelo senso comum (GRAMSCI apud SIMIONAT­TO, 1999, p.80).

40Conforme indica Simionat­to, os sujeitos produzem sig­nificados acerca de suas expe­riências sociais e suas próprias ações.

Gramsci procura mostrar que o senso comum já é filosofia, mesmo incipiente e fragmentária. É filosofia porque opina sobre o mundo, formula juízos de valor de caráter geral, os quais, tomados em conjunto, apresentam uma certa organi­zação intelectual e moral da experiência individual e coletiva (SIMIONATTO, 1999, p.82).

41Ainda sobre a absorção de valores comprometidos com a representação negativa da fa­vela por seus próprios mora­dores, Janice Perlman aponta que « Com maior frequência, os favelados absorvem e interna­lizam a descrição negativa que deles é feita, e culpam a própria ignorância, preguiça e desvalia pela falta de 'sucesso' » (PERL­MAN, 1977, p. 293).

42Participam da arena em dis­puta diversos atores, estatais ou não, envolvendo ações de con­trole, seja por meio da coerção ou do consenso, legitimando as mais variadas ações, mas buscando legitimar prioritaria­mente as ações estatais, o que depende da absorção de deter­minados valores morais pela população em geral, e espe­cialmente pelos moradores de favelas e outras áreas populares estigmatizadas.

43Assim, para Gramsci (2001), o Estado é a sua dimensão co­ercitiva – a Sociedade Política – mais a sua dimensão con­sensual – a Sociedade Civil. A Sociedade Política, ou Estado­-coerção (COUTINHO, 2007), é formada pelos aparelhos re­pressivos, sendo eles as insti­tuições policiais e as forças ar­madas, cujo objetivo é garantir o uso exclusivo da força pelo Estado. A Sociedade Civil, por sua vez, é formada pelos apa­relhos privados de hegemonia – partidos políticos, fóruns po­líticos, sindicatos, associações de moradores, escolas, igrejas, associações empresariais etc. – nos quais há o jogo político propriamente dito, e onde são propagados os valores culturais em disputa. Esses aparelhos privados de hegemonia são ins­tituições com relativa autono­mia e que cumprem um papel decisivo na formação do que Gramsci chama de consenso, o consentimento necessário à le­gitimação da ordem vigente e do controle estatal.

44Nas favelas, o Estado tam­bém opera através de suas duas dimensões de controle. Ao mesmo tempo que impõe aos moradores de favelas um mo­delo repressivo que viola direi­tos fundamentais, implementa, norteado pelo « paradigma da ausência » (SILVA; BARBOSA, 2005), uma série de políticas públicas em favelas que o legi­timam enquanto fornecedor de serviços urbanos básicos, ge­ralmente estabelecendo algum nível de controle – ainda que repleto de conflitos – em sua relação com as favelas.

45Em geral, o Estado ativa seus mecanismos de controle (coer­ção e consenso) utilizando-se do território. Este último é con­cebido aqui não apenas como elemento físico, mas como uma construção social que, a partir de suas relações de poder in­trínsecas, normatiza comporta­mentos e cria identidades. Os territórios produzem visões de mundo que influenciam ações e relações sociais em seu interior – e também acaba por influen­ciar seu exterior.

46A noção de território aqui se aproxima da ideia de Robert David Sack (1986), para quem o território é uma área delimitada por relações de poder por meio das quais organiza o controle sobre quem pode ou não acessá­-la, afetando o comportamento social no espaço e criando uma fronteira demarcada a partir da diferenciação e da identidade. Para isto ocorrer, combinam-se área, comunicação e controle territorial (SACK, 1986).

47Sack (1986), diferencia a territorialidade humana daque­la presente nos animais. Para o autor, a territorialidade so­cial se dá a partir da tentativa de um indivíduo ou grupo de afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relações, estabelecendo controle sobre uma área geográfica. Isto dife­re a territorialidade humana da animal, cuja territorialidade é marcada pelo instinto.

48Partindo do pensamento de Sack, Soares e Santos (2018) destacam as especificidades da existência do território a partir da premissa do controle. Os autores estabelecem a seguinte diferenciação:

Assim, a simples demarcação ou delimitação de um espaço geográfico não caracteriza a existência de um território. Este último só se manifesta quando suas delimitações e fronteiras são utilizadas para moldar comportamentos e controlar o acesso a recursos e poder. (SOARES; SANTOS, 2018, p.10)

49Sack (1986) ainda elabora um quadro que inclui três efei­tos ou tendências fundamentais da territorialidade, partindo de sua dimensão de controle a par­tir das relações de poder apoia­das no espaço geográfico. O primeiro efeito é a classificação por área, que, segundo o autor, ao não classificar por tipo, tor­na as relações tendencialmente impessoais. O segundo efeito é a comunicação de fronteiras, contribuindo para a organiza­ção de limites territoriais. Por fim, o terceiro é o controle do acesso (a recursos e ao territó­rio). O conjunto de efeitos da territorialidade é responsável pela identificação dos que inte­gram determinado arranjo terri­torial (SACK, 1986).

50Para essa conceituação – que entende o território como uma construção social permeada pelo controle – as favelas são territórios não apenas por seus hábitos e por uma aparente co­esão de valores culturais dos moradores da sua área, mas também por possuírem relações de poder que identificam quem pertence ou não àquele territó­rio, permitindo o uso de práti­cas de controle territorial, seja ele por parte de atores locais ou mesmo pela máquina estatal.

Favelas e políticas públicas no Rio de Janeiro

51Em geral, a fase de imple­mentação das políticas públicas é precedida pela delimitação da área de interesse, consideran­do – em tese – as demandas, as potencialidades e os desafios do território abordado. Delimita-se um território antes mesmo na espacialização efetiva das ações do Estado, ainda no processo de formulação da política.

52Assim, o desenho de políti­cas públicas na favela costuma ter início sem considerar as ter­ritorialidades da favela a priori, o que geralmente cria um des­compasso da política pública em relação à realidade local e suas demandas, verificada mui­tas vezes na distorção dos resul­tados da política pública na fase de implementação em relação aos objetivos iniciais apontados na fase de formulação.

53Esse conflito entre as territo­rialidades faveladas e a territo­rialização de políticas públicas é uma das principais causas de desentendimento entre agentes públicos e moradores de favela no momento de aplicação das políticas públicas. Para reduzir essa incongruência, algumas políticas públicas estimulam a incorporação de líderes comu­nitários e outros atores locais para intermediar o contato entre o Estado e a localidade duran­te a fase de implementação do projeto (LOTTA, 2012).

54Em diversos casos, os in­termediários locais exercem o papel ambíguo de agentes do Estado e moradores da comu­nidade local. Esses agentes são denominados "burocratas do nível de rua" (LIPSKY apud LOTTA, 2012). Na interface entre os formuladores e usuá­rios da política, esses agentes instrumentalizam sua rede de sociabilidade local para conec­tar a política pública às deman­das comunitárias e, ao mesmo tempo, adquirem a confiança da comunidade necessária à facili­tação do diálogo. Lotta explica:

Dessa forma, como será visto, na medida em que esses burocratas implementa­dores convivem dentro da comunidade, a forma como implementam a política pública é diretamente influenciada pelas relações e dinâmicas que estabelecem dentro do território onde moram e traba­lham. (LOTTA, 2012, p.2)

55A utilização de líderes e ato­res locais é uma estratégia de le­gitimação das políticas públicas baseada na confiança que deter­minados atores locais possuem no interior de sua comunidade. É bastante comum já há muitas décadas que tal mediação seja feita através das associações de moradores de favelas ou mes­mo de bairros da cidade formal, dependendo do contexto terri­torial. Como lembra Perlman (1977), tanto a política de ur­banização do período populista como durante o remocionismo empreendido pela ditadura ci­vil-militar, as associações de moradores de favelas foram alvo da cooptação estatal, seja, no primeiro caso, para estabe­lecer um controle paternalista, seja, no segundo, para consoli­dar uma relação coercitiva para impedir a resistência dos mora­dores das favelas removidas.

56Assim, o Estado territoriali­za políticas públicas e os mo­radores de favela mobilizam suas vivências no território, quando possível, para tensionar os representantes do Estado a desenvolverem ações de inte­resse(s) dos moradores. É desta forma, correlata e conflituosa, que geralmente se aplicam as políticas públicas. A favela, em escala local, tensiona os técni­cos e agentes públicos a mu­darem seus projetos "prontos" de acordo com as demandas da comunidade local e suas territo­rialidades.

57No Rio de Janeiro, proble­mas envolvendo a territoria­lização de políticas públicas que não levam adequada­mente a sério o contexto lo­cal são verificados há muitas décadas. Um dos problemas recentes, apontado por Val­le (2016), é a influência que o programa de urbanização de assentamentos populares (PROAP ou Favela-Bairro) sofreu dos traficantes na dé­cada de 1990. As facções intervieram de várias formas, direta e indiretamente, geral­mente induzindo ou coagindo agentes públicos a alterarem os projetos iniciais para satis­fazer os interesses do grupo local de narcotraficantes de varejo territorializados em di­versas favelas.

58Dentre as principais altera­ções, ficou evidente o impedi­mento da realização de obras de asfaltamento e pavimentação de ruas, além da impossibilida­de do alargamento de vias, para evitar a facilitação da entrada de veículos de combate ostensivo da polícia militar. Também foi relatado na época o confisco de máquinas e equipamentos pú­blicos pelos traficantes. Confor­me verificado por Cano (2012), a influência do controle exerci­do pelos traficantes em favelas sobre ações do Estado é bastan­te comum no cenário carioca.

59Outro problema das políticas públicas historicamente adota­das nas favelas cariocas, apon­tado por Rodrigues (2015), é a desarticulação entre órgãos e secretarias de governo quan­do da aplicação dos projetos. Muitos programas não definem com clareza o papel de cada ór­gão ou secretaria e deixam em aberto para que as próprias re­partições dialoguem entre si. O problema é que há falta de inte­resse de algumas secretarias em assumir responsabilidades que não constam inicialmente da sua "missão institucional".

60Encontramos esse tipo de problema na tentativa mais re­cente de estabelecer diálogo entre moradores de favela e agentes públicos em busca de formulação de políticas públi­cas: o Programa UPP Social, que embora tenha organizado fóruns em algumas favelas e realizado coletas de dados em campo com equipes técnicas, esbarrou na falta de interesse e de diálogo entre as secreta­rias da prefeitura do Rio e, ao mesmo tempo, na falta de co­municação entre a prefeitura municipal carioca e o governo do estado do Rio de Janeiro.

61O caso do programa UPP Social, abordado por Ro­drigues (2015), é um exemplo emblemático de sobreposição de tarefas de secretarias en­volvidas e de desinteresse e falta de diálogo entre órgãos e secretarias. Muitos gestores sequer responderam aos rela­tórios da equipe de campo do UPP Social sobre as favelas, dando pouca ou nenhuma con­tinuidade às ações implemen­tadas no território pelos agen­tes do programa.

62Deve ser enfrentada pelos gestores públicos a necessida­de de promover políticas que deixem claramente delineado o papel de cada órgão e secre­taria no projeto, evidenciando quais instituições devem dialo­gar e de que maneira. Isto serve também para a relação entre os entes federativos. Em vez de restringir uma política pública a um município ou estado, seus formuladores devem procurar articulações entre as diferentes esferas de governo. Uma políti­ca reduzida a um ente federati­vo, a um órgão ou a uma secre­taria acaba culminando em um processo de atrofia burocrá­tica, ou seja, a redução de sua capacidade de atuação por não permitir conexão entre várias repartições públicas empenha­das na construção das políticas públicas.

63Por outro lado, vale ressal­tar que qualquer política pú­blica deveria estabelecer uma espécie de ouvidoria, um ins­trumento que possibilitaria à população beneficiada pela política aplicada avaliar quali­tativamente os resultados das ações empenhadas para a fa­vela ou comunidade local. Isto poderia dar resiliência à polí­tica implementada, tornando-a um projeto com capacidade de adaptação.

64Entretanto, é importante lembrar que dependendo do tipo de política pública a que nos referimos – como as po­líticas de segurança pública, por exemplo – seria preciso garantir a não identificação do usuário da política. Este ponto revela uma dimensão autoritá­ria da assimetria de poder en­tre a favela e o Estado, o que dificulta a aplicação de um diálogo sincero e que permita que as políticas públicas sejam avaliadas – da forma mais livre possível – por moradores de favelas que anseiam pelo aces­so a novos serviços urbanos e pela melhoria dos serviços já existentes.

65Tais assimetrias de poder, e tal autoritarismo, retroalimen­tam a estigmatização da qual eles próprios se beneficiam, culminando, muitas vezes, em conflitos entre agentes pú­blicos e moradores de favela, criando sérios obstáculos para políticas públicas que possam garantir o acesso a direitos ci­vis, políticos e sociais nas fa­velas.

Considerações finais

66Uma relação mais justa e democrática entre o Estado e a favela só é possível com o com­bate à estigmatização do fave­lado e à representação das fave­las como territórios dominados pela marginalidade (PERL­MAN, 1977). É condição para tal que as entidades da socieda­de civil localizadas em favelas sejam incentivadas e desenvol­vidas e que canais de diálogo entre estas e o Estado sejam produzidos democraticamente, considerando os moradores de favelas em sua dimensão polí­tica e como sujeitos coletivos.

67É importante destacar tam­bém que a escala local deve ser o locus privilegiado de formu­lação de políticas e ações públi­cas em favelas. O planejamento urbano deve considerar as mais diversas experiências de diálo­go entre os territórios contem­plados pelas políticas públicas e os agentes e representantes do Estado.

68A tentativa mais recente de estabelecer diálogo entre mora­dores de favela e agentes públi­cos em busca de formulação de políticas públicas, o Programa UPP Social, embora tenha or­ganizado fóruns em algumas favelas e realizado coletas de dados em campo com equipes técnicas, esbarrou na falta de interesse e de diálogo entre as secretarias da prefeitura do Rio e, ao mesmo tempo, na falta de comunicação entre a prefeitura municipal carioca e o governo do estado do Rio de Janeiro.

69É fundamental que o Estado crie meios de diálogo demo­crático que possibilitem que os moradores de favela, a partir de suas realidades locais diversas, tenham ampla ingerência na produção de políticas públicas, ainda em suas fases de estudo prévio e elaboração – esse ge­ralmente é o papel das prefei­turas municipais, mas pode in­cluir a participação efetiva dos estados e da União. A margem de atuação das comunidades lo­cais fica demasiadamente redu­zida quando é restringida ape­nas à fase de implantação.

70Os moradores de favela têm direito a planejar e executar ações que visem à melhoria de seu cotidiano em conjunto com agentes públicos de diversos tipos. Tais fóruns devem forne­cer também canais impessoais de comunicação que forneçam condições para que o morador possa reclamar da má prestação de serviços públicos, inclusive de problemas relacionados com a segurança pública (reclamar de arbitrariedades de policiais, etc.) e ter suas reclamações levadas às instâncias públicas decisórias.

71Outro problema a ser enfren­tado pelos gestores públicos é a necessidade de promover políticas que deixem claramente delineado o papel de cada órgão e secretaria no projeto, eviden­ciando quais instituições devem dialogar e de que maneira. Isto serve também para a relação entre os entes federativos. Em vez de restringir uma política pública a um município ou estado, seus formuladores devem procurar articulações entre as diferentes esferas de governo. Uma política reduzida a um ente federativo, a um órgão ou a uma secretaria acaba culminando em um processo de atrofia burocrática, ou seja, a redução de sua capacidade de atuação por não permitir conexão entre várias repartições públicas.

72É importante destacar tam­bém que qualquer política pú­blica deve estabelecer uma espécie de ouvidoria, um ins­trumento que possibilite à população beneficiada pela política aplicada avaliar quali­tativamente os resultados das ações empenhadas para a fa­vela ou comunidade local. Isto pode dar resiliência à políti­ca implementada, tornando-a um projeto com capacidade de adaptação.

73A última proposta que expo­nho é a realização de um plane­jamento urbano mais participa­tivo e democrático e que inclua na projeção de ações estatais os problemas relacionados ao nar­cotráfico. Essa inclusão, entre­tanto, deve ser produto de am­plo debate que envolva diversos setores da sociedade civil, mas principalmente as associações de moradores e movimentos de favela para que se busque a superação da estigmatização da população moradora de favelas.

74Como já mencionado nes­ta conclusão, tais proposições aqui apresentadas têm o objeti­vo apenas de abrir o debate so­bre que ações podem ser postas em prática para tentar transfor­mar o ineficiente e despótico modelo de segurança pública que vigora atualmente e que têm provocado graves viola­ções dos direitos fundamentais, principalmente quando nos re­ferimos a negros e pobres mo­radores da periferia.

75Mais de um século de segregação socioespacial, fragmentação territorial e estigmatização de favelas não terá solução senão com a democratização das relações e através da ampliação do acesso aos direitos fundamentais. O caminho para atingir tais objetivos, além da imprescindível luta popular, é a formulação de políticas públicas de médio e longo prazo, buscando eliminar a estigmatização e as barreiras criadas pela desigualdade social em todas as suas escalas e dimensões.

76É fundamental também encarar os moradores dos espaços segregados da cidade como sujeitos políticos, ou seja, homens e mulheres capazes de produzir alternativas justas e coletivas para resolver as mazelas de seu cotidiano, cobrando que o Estado cumpra seu papel, mas sem que deixem de ser, eles mesmos, sujeitos de seu território.

77As experiências anteriores em relação às favelas e espaços segregados nos fornecem a oportunidade de não repetir os mesmos erros e conceder aos que vivem nesses lugares as condições de buscar a forma mais digna possível de viverem suas vidas, sem que seja preciso que neguem suas raízes culturais e suas formas de construir e reproduzir seu território.