Mais armas, menos crimes ou menos armas, menos crimes? Show Desde há muito tempo e com intensificação na atualidade, discute-se a conveniência ou não da limitação do acesso da população, sem antecedentes criminais, a armas de fogo para fins de autodefesa pessoal e patrimonial. Afirma-se que os obstáculos legais somente têm efetividade quanto ao acesso às armas de fogo pelas pessoas não envolvidas em criminalidade ou que não tenham por fim essas práticas. Quanto aos criminosos, como é de sua natureza, pouco se lhes importa as proibições ou autorizações legais. Essa alegação é realmente procedente. O infrator da lei realmente não se importa nem mesmo um mínimo que seja com a existência ou não de um “Estatuto do Desarmamento”. Por outro lado, a população em geral, não envolvida em práticas criminosas, se vê às voltas com toda uma burocracia legal para a posse e, especialmente, a autorização do porte legal de uma arma de fogo. Ocorre que a questão da liberação ou atenuação das limitações à posse e porte legais de arma de fogo não se reduz a essa obviedade. Há sérias dúvidas quanto aos efeitos do armamento civil e sua possível relação com um aumento de confrontos lesivos e letais em situações do cotidiano, bem como uma possível facilitação do acesso dos criminosos a essas armas que estariam então de posse da população civil. Do mesmo modo, questiona-se se a flexibilização do acesso às armas poderia resultar na redução dos índices criminais, como defendem os armamentistas. Antes, porém, de nos aprofundarmos nesse debate, é preciso destacar que o comércio de armas de fogo, acessórios e munição no Brasil não foi proibido pelo Estatuto do Desarmamento, uma vez que durante referendo realizado em outubro de 2005, 63% dos brasileiros votou de modo favorável à comercialização desses artefatos. Com efeito, observados os requisitos legais, qualquer cidadão maior de 25 anos pode adquirir armas de fogo para mantê-las no interior de sua residência ou em seu local de trabalho, desde que seja o proprietário ou responsável legal pelo estabelecimento ou empresa (art. 4º, do Estatuto do Desarmamento). Feita essa observação, destacamos que vários fatores são relevantes neste debate. Um argumento utilizado correntemente contra a liberação das armas à população diz respeito ao grande número de homicídios que marca as estatísticas criminais brasileiras. Em resposta a isso, os defensores da liberação destacam que a estatística crua não revela o fato de que a quase totalidade desses homicídios é perpetrada por criminosos contumazes com armas ilegais ou por jovens violentos que não teriam acesso às armas legalizadas. Em contraponto, salienta-se o fato de que o armamento da sociedade não afetaria o comércio ilegal de armas de fogo, pelo contrário, a viabilização desse comércio fatalmente acarretaria na redução dos valores das armas no “mercado negro”. Estima-se que um fuzil custe hoje aproximadamente 30 mil reais no comércio ilegal, sendo que com a flexibilização das regras sobre o tema esse valor fatalmente seria reduzido pela metade. Justamente por isso, acredita-se ser ilusória a percepção de que a mudança na lei tornaria possível um maior controle sobre a circulação de armas no país, vez que, além dos criminosos, muitos “cidadãos de bem” também optariam pelo comércio ilegal cujos valores seriam bem mais atrativos. Fato é que hoje em dia o Brasil apresenta uma enorme deficiência no controle de suas fronteiras, o que repercute não apenas no comércio ilegal de armas, mas no tráfico de drogas, contrabando, descaminho etc. A Polícia Federal, órgão com atribuição para o controle das fronteiras (secas e molhadas), conta hoje com menos de dez mil policiais. A Argentina, país com extensão territorial muito inferior ao Brasil, dispõe de quase 30 mil policiais federais e o México, por sua vez, tem um efetivo próximo aos 60 mil servidores. Resta evidente, portanto, a necessidade de investimento nessa área! Outro temor existente é o de que o civil armado, ao tentar resistir a uma abordagem de um criminoso, num roubo, por exemplo, venha a se ferir ou mesmo a ser morto, aumentando a letalidade já enorme em nosso país e ainda ensejando ao infrator a possibilidade de subtração de mais uma arma de fogo e munição. Demais disso, sustenta-se que armas de fogo são, sobretudo, instrumentos de ataque e não de defesa, o que, ao menos em tese, traria mais riscos aos cidadãos armados. Doutra banda, autores como John R. Lott Jr., demonstram que estatisticamente o fato de haver uma população armada inibe a atuação de criminosos e diminui o número de confrontos. LOTT JR. trabalha com fontes diretas de números que comprovam sua tese, inobstante sejam números referentes a países anglo-saxões e europeus, nada havendo sobre a realidade brasileira, mesmo porque não passamos pela experiência da liberação das armas. A idêntica conclusão, com base também em fontes estatísticas diretas, chega Joyce Lee Malcolm, com relação à “experiência inglesa”. EHRLICH chama a atenção para o fato de que em países como o Canadá, onde a população não costuma ter armas de fogo em casa, os índices de invasões residenciais para roubos, mesmo com os moradores presentes, é “três vezes maior” do que em países como os Estados Unidos, “onde o porte de armas é mais comum”. Ocorre que em excelente estudo sobre o tema, CERQUEIRA e MELLO, pesquisadores do IPEA, indicam pesquisas que demonstram exatamente o contrário, senão vejamos:
Na mesma linha, John J. Donohue demonstra em estudo mais recente a falácia do lema Mais Armas, Menos Crimes, em contraponto ao estudo de LOTT JR., já citado. DONOHUE estima que a adoção de leis mais permissivas ao armamento da população eleva em até 15 % o índice de crimes violentos. Em estudo semelhante, MCCLELLAN examina o impacto das leis Stand Your Ground (que viabilizam o acesso às armas de fogo) sobre homicídios e lesões por armas de fogo nos EUA. Usando dados mensais estaduais e uma estratégia de identificação diferença-diferença, conclui-se que essas leis resultam em aumento de homicídios. De acordo com as estimativas do autor, pelo menos 30 indivíduos são mortos a cada mês como resultado das leis Stand Your Ground. Além disso, ele documenta evidências que sugerem que essas leis também estão associadas a um aumento nas internações relacionadas a lesões infligidas por armas de fogo. Em conjunto, as descobertas neste artigo suscitam sérias dúvidas contra o argumento de LOTT JR., no sentido de que mais armas resultam em menos crimes. Reforçando essas conclusões, mas com foco na realidade brasileira, CERQUEIRA demonstra, por meio de análise de dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e do Ministério da Saúde, o seguinte:
Em contrapartida, os críticos desses tipos de estudos estatísticos apontam argumentos interessantes. Quanto aos suicídios, o estudo é feito usando, obviamente, dados de famílias em que houve compra de arma de fogo e suicídio, o que realmente, de forma inevitável, vai resultar numa conclusão de que nessas famílias o número de suicídios por arma de fogo é enorme. Ora, mas se a mesma pesquisa fosse realizada com cordas grossas e longas ou com veneno de rato, tendo por objeto os números de suicídios, respectivamente, por enforcamento e envenenamento, os resultados seriam idênticos. Será que isso indicaria a solução da proibição de obtenção de cordas e veneno para ratos? Ou ao menos a criação de toda uma burocracia em torno disso, dificultando às pessoas o acesso a esses produtos? Semelhante raciocínio pode ser feito com relação aos dados de invasão de domicílios em que havia armas e as ocorrências de violência. A presença da arma é ligada à violência perpetrada, mas esta ocorre em inúmeros casos de famílias desarmadas também. Focando na presença de armas, o resultado acaba sendo dirigido. Ademais, não constam de registro ou estatísticas os inúmeros casos em que alguém conseguiu evitar a invasão de sua casa, um furto, um roubo, porque estava armada, tinha uma arma em casa, fez um simples disparo para o alto ou apenas a apontou e o infrator fugiu. Essas pessoas normalmente não efetuam registro desses fatos, de modo que os registros existentes versam somente sobre casos em que houve violência contra os moradores, independentemente de estarem armados. Ora, mas uma enorme e incalculável cifra negra atua sem que seja possível englobá-la na pesquisa. Afinal, a maioria das pessoas sabe de casos ou já vivenciou em sua própria família, a expulsão de ladrões e outros agressores porque alguém estava armado. Registre-se, porém, que em muitos desses casos a “cifra negra” é aumentada justamente devido a ilegalidade da posse da arma de fogo, o que também dificulta a análise empírica de dados. Tal constatação não foi olvidada por CERQUEIRA e MELLO:
Analisando a questão sob uma ótica pouco explorada dos “Direitos Humanos”, SANTOS aponta para o fato de que os documentos legais internos e externos que garantem esses direitos, não são impeditivos da autodefesa do cidadão quando sofre exatamente uma violação de seus próprios direitos por parte de criminosos que atacam sua liberdade, sua integridade física, seu patrimônio e, até mesmo, sua vida. Nesse diapasão, os óbices ao armamento civil do cidadão seriam obstáculos, em última análise, à efetividade da “legítima defesa própria e de terceiros” em momentos em que o Estado não se faz presente para garantir a Segurança Pública. O mesmo autor analisa também dados estatísticos de outros países e do próprio Brasil sobre violência e aponta para o fato de que um dos fatores que incrementam a ousadia dos criminosos no Brasil é a adoção, pelo Estado e pela própria sociedade civil, inclusive pela mídia dominante, daquilo que denomina de uma “ideologia da rendição”, quando se orienta para o desarmamento civil e para uma atitude passiva, de não resistência do cidadão frente ao crime. SANTOS apresenta uma conclusão:
Nesse ponto somos obrigados a discordar, pois o grau de civilidade e desenvolvimento de um país ou de uma sociedade está diretamente ligado às suas estatísticas criminais. Quanto mais atrasada uma sociedade, maior a necessidade de se regulamentar tudo através de lei. Infelizmente vivemos em um país onde não se respeita o idoso e nem deficientes físicos, um país conhecido pelo “jeitinho”, em que muitos procuram obter benefícios em prejuízo de outros. Será que armar uma sociedade repleta de conflitos interpessoais, seja num acidente no trânsito ou em uma discussão entre vizinhos, seria prudente? Em um país onde valores éticos e morais não são bem desenvolvidos, é no mínimo temerário o armamento da sociedade. Pondera-se, entretanto, que o cenário se complica quando são analisados dados sobre homicídios com uso de armas de fogo e se percebe que, para a conclusão de que grande número de homicídios se dá com armas de fogo em discussões banais entre vizinhos ou em violência doméstica, são considerados somente casos de “homicídios esclarecidos” e não o global de “homicídios cometidos”. Isso certamente distorce os resultados porque esses homicídios banais são geralmente esclarecidos, quando não objeto de prisão imediata em flagrante, enquanto um enorme número de crimes ocultos não é considerado na estatística. Assim sendo, de maneira totalmente equivocada, surgem os crimes banais entre vizinhos e parentes com armas de fogo em mãos do cidadão comum, como grandes propulsores da mortandade que assola do país, quando isso é uma enorme falácia. Outra questão diz respeito a “acidentes domésticos com armas de fogo”, os quais são superexpostos midiaticamente, enquanto muitos outros acidentes domésticos letais, com muito maior incidência estatística, são desconsiderados. Por fim, SANTOS ainda apresenta uma suposta “pesquisa” da OAB que divulgou que de cada 16 casos de reação a roubos, 15 deles resultaram em morte ou lesões graves nas vítimas, embora armadas. Ao buscar os dados em que teria se baseado tal pesquisa junto à própria OAB, o autor foi informado que tais “dados” eram inexistentes e que as conclusões resultaram do exame de alguns Boletins de Ocorrência específicos num número insignificante de trinta casos! Ou seja, como conclui Santos, a tal “pesquisa’ certamente se tratava “de uma fraude”. Em meio a um imenso desacordo sobre os melhores rumos quanto à política de armas, surgem os mais variados autointitulados “especialistas”, alguns belicistas e escandalosos, outros de voz mansa e pregando a paz e o amor em situações inviáveis. A grande realidade que qualquer pessoa totalmente honesta pode afirmar, é que essa é uma questão complexa. Entretanto, há pouco tempo, foi veiculado nas redes sociais o discurso de um desses “especialistas” em segurança (um filósofo, escritor de livros que misturam filosofia simplificada e autoajuda). Esse indivíduo afirmava, como motivo inquestionável para legitimar o desarmamento civil, o fato de que vivemos num país onde há rivalidades sociais, políticas, violência e turbulência. Na sua visão, em reuniões públicas, manifestações etc., se for liberada a aquisição de armas de fogo e seu porte, haveria morticínios incontroláveis. Esse tipo de manifestação, sinceramente, em nada contribui para o esclarecimento das pessoas, mesmo porque é feita por um absoluto ignorante em legislação que acaba fazendo afirmações sobre as leis do país que desconhece completamente. Na oportunidade, tive de postar um comentário que ora reproduzo em parte (autor Eduardo Cabette):
Pois bem, esse é exatamente o perigo desse debate. O ilusionismo dos falsos “especialistas” que nos acediam de ambos os lados. O exemplo acima somente é destacado porque recente e realmente demonstrativo de como uma afirmação sem qualquer sustento legal ou fático pode ser tomada popularmente como um grande argumento, no caso contra o armamento civil; mas há também manifestações absolutamente descabidas e que beiram à insanidade no que se refere à apresentação do armamento da população como uma espécie de panaceia. Retornando a EHRLICH, é importante ter presente a noção seguinte:
Por isso é tão difícil marcar uma posição segura sobre o tema, considerando a realidade brasileira em comparação com outros países e culturas. Deixamos, portanto, aos leitores, a formação da própria opinião, porém, com a capacidade crítica e o acesso a uma bibliografia aqui visitada, que contrasta com a praticamente hegemônica defesa do desarmamento, bem como também com a bibliografia que atualmente defende o desarmamento civil. É importante, para a formação de uma opinião “informada” e “bem formada” que se tenha acesso a toda a rede de argumentações em um debate franco e aberto. REFERÊNCIAS CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro; MELLO, João Manuel Pinho de. Menos Armas, Menos Crimes. IPEA. Texto para Discussão nº 1721, 2012. Disponível aqui . Acesso em 15.03.2018. CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro. Causas e Consequências do Crime no Brasil. Rio de Janeiro: BNDES, 2014. CORTELLA, Mário Sérgio. Disponível aqui , acesso em 13.03.2018. DONOHUE, John J. Right-to-CarryLawsandViolent Crime: A ComprehensiveAssessmentUsingPanel Data, the LASSO, and a State-LevelSyntheticControlsAnalysis. Disponível aqui. Acesso em 15.03.2018. EHRLICH, Robert. As nove ideias mais malucas da ciência. Trad. Valentim Rebouças e Marilza Ataliba. São Paulo: Ediouro, 2002. LOTT JR., John R. Mais Armas Menos Crimes? Trad. Giorgio Capelli. São Paulo: Makron Books, 1999. MALCOLM, Joyce Lee. Violência e Armas. Trad. Flávio Quintela. Campinas: Vide Editorial, 2014. MCCLELLAN, C.; TEKIN, E. Stand Your Ground Laws, Homicides, and Injuries. JournalofHumanResources, p. 0613–5723R2, 17 ago. 2016. Disponível aqui. Acesso em 15.03.2018. SANTOS, Luiz Afonso. Armas de Fogo Cidadania e Banditismo – O outro lado do desarmamento civil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999. QUINTELA, Flávio, BARBOSA, Bene. Mentiram para mim sobre o desarmamento. Campinas: Vide Editorial, 2015. Será que houve aumento ou diminuição no número de homicídios Qual sua percepção?Entre os diversos dados, o estudo apontou que houve redução de 6,5% nas mortes violentas intencionais (homicídios, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais) no ano passado frente a 2020. A redução, no entanto, não ocorreu em todo o país.
Qual é o maior motivo para os assassinatos no Brasil?De 25% a 80% dos homicídios no Brasil são cometidos por impulso ou motivo fútil. Entre 2011 e 2012, os homicídios por impulso ou por motivos fúteis totalizaram entre 25% e 80% dos assassinatos com causas identificadas no Brasil, a depender do estado.
O que faz aumentar a violência?Apesar da desigualdade socioeconômica e de crimes contra o patrimônio não serem necessariamente uma relação de causa e efeito, o crescimento da violência é uma tendência do reflexo do aumento da fome e de pessoas em situação de pobreza.
Como a violência se apresentou ao longo do tempo?Ao longo da década de 80, enquanto o número total de mortes aumentou em cerca de 20%, as causas violentas elevaram-se em 60%. No ano de 1988, acidentes e violência foram responsáveis por cerca de 100 mil óbitos no país, representando o segundo grupo mais importante de causas de mortes(8).
|