Como ocorre a transição do estado de natureza para o estado de sociedade?

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DOI:

https://doi.org/10.23925/poliética.v4i1.31407

Resumo

Neste texto propomo-nos demonstrar o influxo de Jean-Jacques Rousseau sobre Immanuel Kant no que se refere a mudança no conceito de liberdade. Essa modificação ocorre na transição do estado de natureza para o estado de sociedade. Essa influência, além de ser parte da base conceitual dos filósofos, ascendeu de forma abrangente o pensamento idealista do século XIX. A prescrição deu-se em vários campos e, aqui, nos aproximaremos daquilo que foi proposto tanto pelo filósofo genebrino como pelo prussiano, na esfera da percepção de ambos sobre a transição entre os Estados, na prerrogativa de certa liberdade moral. Para isso, o texto buscará se apropinquar da descrição de um escopo político diferenciado (moral) no qual a ética sobressairá como pano de fundo. Por assim dizer, a ação moral em sua interação com o indivíduo transitará neste texto por meio de dois objetivos, quais sejam: debater a liberdade de forma a demonstrar como as ações humanas definem ou não o caráter social das pessoas e perceber o aspecto causal existente nos conceitos (e na percepção do fenômeno) de bem e de mal, aparentemente, apodíticos. Assim, procurar-se-á identificar a mudança conceitual sofrida pela liberdade durante o processo de transição entre os Estados.

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Como ocorre a transição do estado de natureza para o estado de sociedade?

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Interseção entre obras e conceitos de Rousseau

Derick Casagrande Santiago

Resumo

A proposta deste trabalho consiste em evidenciar as aproximações entre os conceitos de estado de natureza e de infância elaborados por Rousseau. A intenção é explorar a relação entre esses conceitos que compõem sua concepção acerca da natureza humana sob duas perspectivas: de um estágio do desenvolvimento de seu gênero e, analogamente, de uma fase etária de sua vida.

Abordar o pensamento do filósofo suíço, ainda que de forma limitada por ter como foco os conceitos indicados, proporciona a identificação da complementaridade entre seus escritos político-filosóficos e pedagógico, denotando seu eixo central: o Homem e sua sociabilidade. Neles são descritas, respectivamente, as características distintivas dos seres humanos em relação aos animais e da primeira fase da vida humana, de forma que compõem interpretações à constituição de sua vida em sociedade sob as determinadas leis que a regula e à orientação específica para o desenvolvimento individual frente às manifestações comportamentais relativas à idade.

A contribuição de sua obra não se restringe à explicação da formação da sociedade e da origem do Estado, mas abrange também a compreensão da infância e da educação a ela destinada, uma vez que essa fase da vida se manifesta por comportamentos específicos cujo acompanhamento exige orientação adequada.

Dessa forma, o trabalho é uma reflexão teórica cuja realização se baseou no Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens (1753), nos livros I e II do Do Contrato Social (1762) e nos livros I e II do Emílio ou da Educação (1762). Além dessas obras do próprio pensador, a reflexão proposta consistiu também em literatura pertinente às suas interpretações e relativas aos conceitos em questão.

A exposição está estruturada sobre três eixos: o recurso metodológico de construção do pensamento de Rousseau; a convergência das descrições da fase inicial tanto do gênero como na vida humana e, por fim, o processo de transição do estado de natureza ao estado civil e da infância à fase adulta. Eixos esses que permitem mostrar que o Homem em seu estado de natureza e, analogamente, na infância é caracterizado pelos sentimentos de amor de si e de piedade e por ser dotado de liberdade e de perfectibilidade.

Além disso, indica-se a existência de um processo gradual de evolução relacionado aos conceitos em questão, ou seja, condizente tanto ao gênero como à vida humana. Se a conformação da sociedade corresponde a uma mudança do tipo de convenção, da natural – marcada pela ausência de relações sociais – à civil – marcada pelo estabelecimento de um contrato social; o desenvolvimento individual corresponde, por sua vez, à mudança na forma de se expressar com o mundo, dos sentidos – marcados pelo domínio de expressões não verbais – à razão intelectual – marcada pelo domínio da linguagem estruturada e verbalizada.

Palavras-chave

Estado de natureza; Infância; Rousseau.

Introdução

No contexto do Iluminismo, período marcado pela primazia da razão e pelo fortalecimento do racionalismo, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) desenvolveu e publicou suas ideias acerca da música, da política e também da pedagogia, estas últimas apresentando maior destaque devido a suas contribuições e reverberações. Emílio ou da Educação e Do Contrato Social, publicadas em 1762, são as obras que o tornaram mais conhecido e, devido ao teor das ideias e críticas nelas contidas, foram proibidas em diferentes países europeus.

No Emílio, o objetivo da educação é transformar uma criança, chamada de Emílio, em um homem capaz de atender às responsabilidades da vida humana, sobretudo da vida em sociedade, independentemente de sua vocação e ocupação profissional. A educação corresponderia à prática do ensinar a viver proporcionando ao homem o conhecimento de si próprio. O que não condizia, segundo Rousseau, com as práticas e com a noção de criança corrente em seu tempo, uma vez que “procuram sempre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem” (Rousseau, 2004, p. 4). Para Rousseau, a infância não termina quando a criança substitui os gritos e choros pelo uso da linguagem, mas quando ela dispõe de entendimento suficiente para discernir o bem e o mal, o que marca o início da fase adulta, denominada por ele como idade da razão.

Da mesma forma que o Emílio expressa uma contribuição para o conceito de infância, o estado de natureza definido por Rousseau também é inovador. Sendo esse estado hipotético, assim como o próprio Emílio, o homem desconheceria a moralidade (o bom e o mau), não se socializaria com outros e seria caracterizado pelos sentimentos de amor de si e de piedade, além de ser dotado de liberdade e perfectibilidade.

Evidencia-se, portanto, que o pensamento pedagógico de Rousseau está associado às suas ideias políticas. Essa relação é constatada pela analogia entre a constituição da criança e do estado de natureza, uma vez que “os atributos da criança são, para o autor, aqueles supostamente constitutivos do homem no estado de natureza” (Boto, 2010, p. 209).

Resultado de pesquisa concluída, este trabalho apresenta como objetivo compreender e refletir acerca das aproximações entre tais conceitos, identificando ainda a relação existente entre as obras de Rousseau. Para tanto, sua realização concentrou-se nos livros I e II do Emílio, no Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens e também nos livros I e II de Do Contrato Social. Além dos escritos do próprio pensador, a reflexão proposta consistiu também em literatura pertinente à interpretação de suas obras e relativas aos conceitos em questão.

As aproximações entre os conceitos estão elencadas sob três aspectos no desenvolvimento deste trabalho: a metodologia empregada por Rousseau; a descrição das características constitutivas do homem em estado de natureza e da infância e, por fim, a descrição do processo de transição do estado de natureza ao estado civil e da infância à fase adulta.

O caráter conjectural da metodologia

Considerar a metodologia adotada por Rousseau é relevante não apenas por expressar a forma pela qual os conceitos foram definidos, mas também por expressar a forma pela qual seu pensamento está estruturado. O filósofo recorreu às construções hipotéticas para apreender a essência do Homem e, a partir dela, discorreu acerca do processo de mudança do estado de natureza ao estado civil e também das fases do desenvolvimento da vida humana. “O objeto é o estudo do homem. […] conhecer o homem em sua natureza essencial é ir além do existente, daquilo que está historicamente dado, e ir em busca de um estado inexistente” (Fortes, 1996, p. 43-44).

Em Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens é indicada a relevância e abrangência do estado de natureza para o conhecimento verdadeiro acerca do próprio homem ao abordar a passagem de uma desigualdade de natureza para uma desigualdade moral e política.

A imagem do homem nesse estado corresponderia à forma como a natureza o constituiu, apresentando saúde e estrutura física completa, além de ser dotado de toda a capacidade para seu enrijecimento corporal e seu progresso intelectual, de modo que sua sobrevivência seja garantida e suas necessidades satisfeitas.

Diante dessas considerações, Rousseau afirmou: “Não poderei formular sobre esse assunto senão conjecturas vagas e quase imaginárias” (Rousseau, 1973a, p.243). Suas conjecturas dispensam as determinações históricas quanto à origem e aos progressos do homem até atingir o estado civil, esboçando ainda os elementos que culminaram na transição das fases evolutivas. Tratou-se de esboçar outra historicidade à explicação dos fatos, não se referia ao estabelecimento de um sentido cronológico exato de seus acontecimentos, mas de um sentido lógico. O caráter conjectural do método adotado representa um recurso necessário e adequado para a apreensão desejada da realidade.

O emprego de conjecturas como recurso metodológico não ocorreu de forma exclusiva para a definição do estado de natureza e de seu processo de transformação ao estado civil. De forma análoga, o movimento da situação humana de um estado a outro é identificado no movimento das fases da vida do indivíduo.

Refere-se à criação de um aluno imaginário, Emílio, cujo acompanhamento e educação estariam, desde o nascimento até tornar-se adulto, sob a responsabilidade do filósofo enquanto seu preceptor. A possibilidade de conjecturar acerca da infância, representada na figura do aluno, apresenta-se de forma dissociada de uma dimensão histórica, permitindo o afastamento necessário da educação praticada até então, para esboçar uma educação condizente com os momentos de desenvolvimento humano e sob os preceitos da natureza.

A infância e o estado de natureza não apresentam dimensões históricas e geográficas bem demarcadas, o que não significa que as conjecturas sejam destituídas de lógica. Há uma sequência biológico-cognitiva, dotada de sentido genealógico e evolutivo, que expressam as transformações do estágio selvagem e da fase infantil para o estágio civil e para a fase adulta (Machado, 1968; Dalbosco, 2011).

A adoção de conjecturas, além de recurso necessário para alcançar os objetivos estabelecidos pelo filósofo, permitiu uma nova acepção acerca da condição do homem tanto no que tange ao desenvolvimento de sua vida em sociedade, por meio do conceito de estado de natureza, como também ao desenvolvimento de sua própria vida, por meio do conceito de infância. Mas estas não são as únicas convergências e analogias existentes entre tais conceitos, outras podem e são melhor identificadas a partir da descrição das características constitutivas do homem em seu estado primitivo e em sua fase infantil.

As características constitutivas do estado de natureza e da infância

Ainda no Discurso, Rousseau articula seu recurso metodológico com a descrição das características peculiares do homem em relação aos animais e também em relação aos seus próprios estágios de desenvolvimento.

Há um tipo de desigualdade natural e um tipo de desigualdade do estado civil. O primeiro refere-se àquele existente devido às determinações naturais, “consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma” (Rousseau, 1973a, p. 241). Já o segundo é estabelecido em consequência de convenções sociais, que demarcam os privilégios de poucos em detrimento de todos os outros. Essa última emerge a partir da sociabilidade desenvolvida pelos próprios homens e, portanto, condiz com o estado civil.

É a natureza que, mesmo sendo quase nulas as desigualdades por ela impostas, fornece as condições necessárias para o desenvolvimento do homem e o aprimoramento de suas forças. Projeta-se no homem toda a possibilidade de seu aprimoramento diante das determinações da natureza, ocorrendo em ordem e tempo sob sua determinação. Nesse estágio, o homem apenas possui o próprio corpo como instrumento e age instintivamente em prol de sua própria conservação. As forças de que dispunha eram aquelas necessárias para a satisfação de suas necessidades naturais, o que o tornava suficiente para si mesmo.

Perceber e sentir será seu primeiro estado, que terá em comum com todos os outros animais; querer e não querer, desejar e temer, serão as primeiras e quase únicas operações de sua alma, até que novas circunstâncias nela determinem novos desenvolvimentos (Rousseau, 1973a, p. 250).

Dessa forma, as características distintivas do homem em comparação ao animal não consistem tanto no âmbito físico, mas sim no aspecto metafísico e moral.

A liberdade do homem consiste em sua possibilidade de escolha entre seguir ou resistir às influências exercidas pela natureza. Há outra característica que o distingue dos animais, trata-se da perfectibilidade, que reside em toda potencialidade do homem se desenvolver no decorrer do tempo (Rousseau 1973a).

Agindo conforme a busca pela satisfação de suas necessidades reais, os desejos do homem são aqueles passíveis de satisfação pelas forças e habilidades que detêm. Nessa fase, verifica-se a existência de um equilíbrio entre os desejos e as faculdades humanas para saciá-los, ou seja, há uma igualdade entre o poder e a vontade. Emerge daí o ímpeto pela própria preservação e, posteriormente, pela dos semelhantes, somando-se às duas características – liberdade e perfectibilidade – os sentimentos de amor de si e de piedade.

O amor de si condiz com a busca de tudo o que permita, desde que associado às satisfações das necessidades naturais, à conservação da própria vida do homem. A piedade apresenta-se também como uma disposição natural, universal e útil, mas não relativa ao próprio homem e, sim, aos seus semelhantes, principalmente quando eles estão em situações de fraqueza e/ou perigo. Refere-se ao reconhecimento de si mesmo no semelhante.

Enquanto o amor de si está associado à conservação do próprio homem, no sentido individual, a piedade tange a conservação no âmbito de toda a espécie humana, uma vez que há esse reconhecimento mútuo entre o homem e seus semelhantes.

As duas características, a liberdade e a perfectibilidade, e os dois sentimentos, o amor de si e a piedade, representam a inclinação natural do homem. O que ele é foi proporcionado pela natureza e, ainda segundo Rousseau (1973a), essa natureza se manterá independente da força do hábito que a contraria.

Essas disposições não devem ser violadas pela educação, que apresenta como proposta priorizar a formação do indivíduo para si mesmo em detrimento de sua formação para a sociedade. A educação advém da natureza, condizente com o desenvolvimento interno das faculdades e órgãos humanos; do próprio homem, responsável pelo emprego desse desenvolvimento, e também das coisas, estando orientada pelas experiências adquiridas com a relação entre os objetos. Essa tríplice origem deve estar conjugada para possibilitar que, com as disposições naturais, a formação proporcione tudo que for necessário (Rousseau, 2004).

Sendo a finalidade da educação ensinar a viver, o processo educativo inicia-se com o nascimento e deve priorizar o agir, exigindo o movimento do corpo, o uso dos órgãos e dos sentidos. A criança não deve ser poupada de vivenciar situações e dificuldades, pois “a verdadeira educação consiste menos em preceitos do que em exercícios” (Rousseau, 2004, p.15), assim, aprende-se a senti-las e a suportar os inconvenientes da vida.

Por ser fraca e destituída de forças suficientes para a satisfação de suas necessidades, a criança é dependente do adulto para a garantia da sua sobrevivência. A intervenção do adulto deve ocorrer para que a criança tenha suas necessidades naturais atendidas e seu progresso mantido conforme a ordem natural, o que corresponde à condução adequada da educação.

Assim, conforme sugeriu Rousseau (2004): “Observai a natureza e segui a rota que ela vos traça. Ela exercita continuamente as crianças, enrijece seu temperamento com provas de toda espécie e cedo lhes ensina o que é sofrimento e dor” (p. 24).

A exposição ao sofrimento e à dor é necessária para que, além de aprimorar o corpo, fortalecer na criança o sentimento de conservação de sua vida, uma vez que só se pode querer conservá-la a partir da noção das possibilidades da perda.

Além de incentivar seu desenvolvimento, serão evidenciados os limites de suas forças nas ações. Assim, a criança é livre para conhecer suas forças e agir conforme as potencialidades que possuem de forma que o impedimento de qualquer ação decorra da natureza e não da intervenção do adulto. No entanto, essa liberdade está submetida a limitações, expressas pela insuficiência de suas forças e pela relação de dependência com o adulto, o que a corresponde ao âmbito dos desejos de forma que aprenda a viver com a privação daquilo que não se tem. Revela-se, dessa forma, que o papel da educação correspondente a essa fase da vida consiste:

[…] na busca do equilíbrio entre os desejos e as faculdades, pois querer formar em excesso as faculdades da criança, reprimindo seus desejos, significa não compreendê-la adequadamente. Significaria, bem ao contrário, como alerta Rousseau, querer transformá-la precocemente num adulto, matando, com isso, a alegria e a felicidade própria da infância (Dalbosco, 2012, p. 1123).

É a natureza que também propicia os momentos oportunos para o desenvolvimento dos órgãos e dos sentidos, sendo a preocupação do adulto manter a educação conforme a marcha da natureza. Deve-se permitir que a natureza aja sobre a criança, ou seja, que o desenvolvimento de suas faculdades ocorra no tempo adequado de acordo com sua idade, sem antecipar os progressos. “Portanto, a primeira educação deve ser puramente negativa. Consiste não em ensinar a virtude ou a verdade, mas em proteger o coração contra o vício e o espírito contra o erro” (Rousseau, 2004, p. 97).

O caráter negativo da educação natural refere-se à negação do ensino da virtude e da verdade, sendo sua orientação voltada à preservação do recurso do qual a criança faz uso para estruturar seu pensamento, a razão sensitiva ou seus sentimentos, e do afastamento do vício e do erro presentes em uma sociedade considerada corrompida. O julgamento na infância decorre dos sentidos da criança, deve-se, para tanto, aprender a sentir (Rousseau, 2004).

A criança possui a mesma estrutura física e os mesmos sentidos que o homem, ela é dotada de toda possibilidade para o desenvolvimento sensorial e racional para atingir a fase adulta. Enquanto suas faculdades não se aprimorarem, a diferença consiste na capacidade de interpretação daquilo que é absorvido pelos sentidos e na forma de se expressar e se relacionar com o adulto e com os objetos. Nesse sentido, a educação deve priorizar tanto o aprimoramento do corpo como também o dos sentidos de forma que a criança conheça suas forças e seus limites, apreenda e se relacione com o mundo da maneira particular de sua idade.

A efetividade dos procedimentos educativos propostos depende da compreensão da infância como uma fase particular da vida, dessa forma só a partir do conhecimento da criança é que se pode pensar a estrutura de seu aprendizado. O que pode ser evidenciado com a afirmação de Rousseau: “posso ter visto muito mal o que se deve fazer, mas acredito ter visto bem o sujeito sobre o qual se deve agir” (Rousseau, 2004, p.4).

Boto (2010) defende a ideia de que Emílio não se trata apenas da esfera pedagógica, mas também da condição humana, uma vez que a obra aborda a acepção da criança e estabelece uma periodização da vida e do aprendizado. Da mesma forma que a elaboração do estado de natureza confere o princípio do homem, a educação permite identificar os princípios da infância. “Quando pensa na situação da infância, Rousseau propositalmente aproxima os atributos da criança daqueles pertencentes ao homem no estado de natureza” (Boto, 2010, p. 215).

Ainda sem o desenvolvimento e uso da razão, tanto o homem em estado de natureza como a criança são amorais e iniciam a apreensão do mundo por meio das percepções e dos sentidos. Isso não significa que não raciocinem, mas que se relacionam com as coisas por meio de uma razão que antecede a razão intelectual, a razão sensitiva.

O homem em estado de natureza é forte, por possuir todas as forças exigidas para as satisfações de suas necessidades, e é livre, com a possibilidade de seguir ou resistir às influências da natureza. Já a criança é fraca, por depender de outrem para satisfazer suas necessidades, sua liberdade está associada aos desejos e está limitada à relação de dependência com o adulto e aos limites de suas próprias forças. Ao contrário do homem em estado de natureza, a fraqueza da criança decorre de sua insuficiência para bastar a si mesma. A liberdade, portanto, consiste no querer aquilo que se pode ter e fazer aquilo que a satisfaz.

A criança ainda desenvolverá toda a força que necessitará para que satisfaça, por si só, suas necessidades; o que permite que todo o desenvolvimento e mudança, em fases evolutivas, sejam possíveis é a potencialidade que possuem para esses aprimoramentos.

Enquanto o homem em estado de natureza é caracterizado pelo sentimento de amor por si, sentimento relativo à preservação da própria vida, visto que sua sobrevivência é garantida pela suficiência de força que possui, a criança, ainda dependente, deve fortalecer esse sentimento por meio de experiências nas quais, além de enrijecer seu corpo, imprima as possibilidades de sua mortalidade.

Do estado de natureza ao estado civil e da infância à fase adulta

Se o homem em estado de natureza era, bastando a si mesmo, dotado de força suficiente para a satisfação de suas necessidades naturais, sua transformação para o estado civil decorreu de um processo progressivo no qual outras necessidades passaram a ser satisfeitas. Processo este caracterizado como “a lenta sucessão de acontecimentos e de conhecimentos” (Rousseau, 1973a, p. 266) que teria perturbado o equilíbrio existente no estado de natureza, alterado as necessidades do homem e, assim, desenvolvido suas faculdades que jamais se desenvolveriam por si mesmas.

O primeiro estágio desse processo foi o estado de natureza hipotético. Dele decorreu, a partir do crescimento do número de homens, o estágio em que o aumento da dificuldade da condição de existência exigiria a afirmação da razão e, com ela, novas relações com as coisas e também percepções sobre o próprio homem e seu semelhante. Os homens estabeleceram vínculos e constituíram famílias, desenvolvendo os sentimentos de amor conjugal e de amor paterno.

No estágio seguinte, houve a invenção da propriedade privada, da agricultura e da metalurgia e, desse avanço, emergiu a desigualdade que se extinguiria com um contrato social para assegurar a vida, a liberdade e os bens dos homens sob as leis. O estabelecimento desse contrato extinguiria as desigualdades e tornaria as características humanas semelhantes àquelas do estado de natureza. Tratava-se de

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoas e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes (Rousseau, 1973b, p. 38).

A constituição desse contrato decorreria da elaboração racional de suas regras que, aceitas voluntariamente por todos, poderiam ser expressas sucintamente em uma única cláusula: “a alienação total de cada associado, com todos os seus bens, à comunidade inteira” (Rousseau, 1973b, p. 38). Dessa maneira, a soberania emanaria do próprio povo, cada homem integraria o poder soberano e estaria submetido à própria lei que elaborou. O poder não se concentraria nas mãos de um grupo ou de um único homem, da mesma forma que os homens não estariam submissos à vontade de um grupo ou de um único homem, mas da vontade geral. A vontade geral se estabeleceria como uma regra suprema sob a qual os homens seriam iguais e livres. Trata-se da expressão direta e autêntica de toda a sociedade e não de uma de suas partes sobre as demais.

Já que o desequilíbrio entre as necessidades e as forças humanas resultou na degradação do homem expressa pela desigualdade, a educação do Emílio deveria ser conduzida, em sua infância, para a manutenção do equilíbrio entre suas forças e suas necessidades por mais tempo possível, o que o preservaria dos vícios e preconceitos do homem em estado civil, conscientizando-o de suas limitações e insuficiências. Se aprendesse a viver por meio de sua relação de submissão às suas próprias faculdades e capacidades, a criança se submeteria com facilidade à vontade geral quando chegasse à fase adulta. Toda a educação proporcionada deveria conduzir a criança para sua autonomia e moralidade, visando sua futura integração na sociedade.

Se um novo contrato proporcionaria a retomada das inclinações do homem à igualdade e liberdade, mesmo que legitimadas por ele por meio de leis e, portanto, não sendo as mesmas do estado de natureza, transformando as relações de desigualdade da sociedade, depende de que a educação o torne apto a integrá-la e mantê-la.

Considerações finais

O pensamento de Rousseau proporciona um conhecimento acerca do homem, desde sua essência até a situação entendida como corrompida, em um período no qual a razão humana buscava descobertas e explicações para diferentes objetos, fenômenos e relações.

Suas contribuições imprimiram nova perspectiva à condição humana relativa tanto ao surgimento e constituição do homem e da sociedade, como também da vida humana em sua fase infantil e adulta. Nesse sentido, destacam-se os conceitos de estado de natureza e infância, os quais foram abordados com a finalidade de indicar suas aproximações a partir de três aspectos: a metodologia adotada pelo filósofo para suas elaborações e para a sustentação de seu pensamento; as características constitutivas de cada um deles; e, sendo eles estágios iniciais de processos evolutivos, suas fases de transição.

A partir de conjecturas, caracterizou aquele que seria o estágio inicial da humanidade – o estado de natureza – e da vida humana – a infância –, dotando-os, respectivamente, de características que os distinguiriam dos animais e do adulto. Estas características, por sua vez, assemelham-se e conferem tanto ao homem em estado de natureza como à criança disposições para, mesmo que manifestadas de formas distintas, como a liberdade, manterem-se vivos e, principalmente, desenvolverem-se. Mesmo elaborando uma história hipotética da evolução humana, tanto em seu âmbito universal como em seu âmbito individual, são os argumentos que, desencadeados de forma racional, conferem lógica e compreensão a toda a tese.

Indica-se ainda que o pensamento de Rousseau estabelece dois pontos distintos relacionados aos conceitos de estado de natureza e infância. No primeiro, relativo ao processo evolutivo da humanidade, haveria dois tipos de convenções, a natural – marcada pela ausência de relações sociais – e a civil – marcada pelo estabelecimento de um contrato social – que estão associadas a dois modos de vida, aquele cuja força é suficiente para satisfação das necessidades e aquele cuja força é insuficiente para satisfação das necessidades, e também a dois planos de consciência humana, aquela cuja apreensão do mundo se dá pelos sentidos e aquela baseada na razão intelectual. O mesmo se aplica ao processo evolutivo da vida humana, no qual o estágio inicial é a infância e o estágio final é a fase adulta. São pontos distintos por compreenderem características e situações diferentes, mas não são contraditórios porque se referem a um processo gradual de evolução. A forma de se expressar e se relacionar, bem como as características da liberdade e da perfectibilidade e os sentimentos de amor de si e de piedade, específicos e constitutivos do homem em estado de natureza também se fazem presentes na infância.

A reflexão apresentada permitiu uma melhor compreensão da complementariedade entre as obras do filósofo e da articulação entre os conceitos nelas contidos, identificando a unidade de seu pensamento, o homem.

Bibliografia

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Rousseau, J.-J. Emílio ou Da Educação. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2004. 3 ed.

Como ocorre a transição do estado de natureza para a sociedade civil?

Assim sendo, a maior falha do Estado de Natureza, era a falta de um terceiro imparcial para julgar as controvérsias advindas da irracionalidade do homem, por este motivo, surge a sociedade civil, para sanar a falta de regras e organização do Estado de Natureza.

Como o homem sai do estado de natureza e passa a viver em sociedade?

Sendo assim, celebram um pacto ou contrato social no qual passam a estar submetidos a um governo que possa, através das leis, garantir-lhes uma vida segura. Os seres humanos abandonam o Estado de Natureza e dão origem ao Estado Civil por meio do contrato social.

Como se dar a passagem do estado de natureza para o estado civil?

(UNIOESTE - 2011)A passagem do estado de natureza “A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça dando às suas ações a moralidade que antes lhes faltava.

Como ocorre a passagem do estado de natureza para o contrato social em Rousseau?

Para Rousseau, o estado de natureza corresponde a um estado original, no qual os homens viveriam sem governo. Os conflitos seriam decorrentes das lutas individuais pela autopreservação. O contrato social constitui o fim desse estado.