Ao falarmos em anamnese temos que primeiramente defini-la trata-se de um tipo de entrevista feita

Educação Médica

Entrevista e Anamnese: uma análise crítica dos vários autores e uma proposta de roteiro e de registro de consulta baseados no método clínico centrado no paciente

Interview and Health History: critical analysis of the various authors and proposal of a consultation guide and record based on the Patient-Centered Clinical Method

Lucas José C. Machado; Maria Mônica Freitas Ribeiro; Milena Maria Moreira Guimarães

Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG

Endereço para correspondência

Lucas José C. Machado
E-mail:

Recebido em: 10/02/2017
Aprovado em: 17/07/2018

Instituição: Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG.

Resumo

O ensino de semiologia médica é um desafio a todos os envolvidos: alunos, professores/médicos e pacientes. O objetivo deste texto é analisar criticamente os textos mais usados no ensino da construçao da história clínica, e propor uma estrutura de diálogo e de registro mais adequada ao método clínico centrado na pessoa (MCCP). Há diferenças importantes entre os vários autores que podem trazer dificuldades aos aprendizes noviços. Em geral estes textos se organizam em torno da estrutura do registro, para desenvolver a construçao da entrevista clínica. Ou seja, o diálogo, mais fluido e interativo, tem uma estrutura lógica a ser seguida. As etapas de uma consulta clínica usando o MCCP sao: abertura (preparaçao, rapport inicial, rastreamento da agenda do paciente e negociaçao da agenda), exploraçao (perspectivas biomédica ou da doença, pessoal e contextual), exame físico, raciocínio clínico, planejamento (conduta, que inclui construçao compartilhada do problema e negociaçao do plano) e fechamento (sumarizaçao e verificaçao de compreensao). Percorremos neste texto a estrutura e nomenclatura usada, procurando compreender a intencionalidade, a presença de um critério, bem como a coerência dos seus conteúdos. Por fim, terminamos com uma proposta de estrutura para a entrevista clínica e seu registro, que transita do método clínico centrado na doença para o MCCP e que seja factível à prática clínica atual.

Palavras-chave: Educaçao Médica; Semiologia; Anamnese; História Clínica; Método Clínico Centrado no Paciente.

INTRODUÇÃO

Este texto foi elaborado a partir da experiência dos autores com a docência em Clínica Médica em cenários práticos, como enfermarias e ambulatórios, que incluem unidades de saúde na Atenção Primária.

A Semiologia é o estudo dos fenômenos como se fossem um sistema de signos ou de representação ou significação. Em Medicina é o meio e modo de examinar um doente, com destaque para os sinais e sintomas, mas que também alcança todas as manifestações da doença, ou melhor, do transtorno ou da necessidade de um indivíduo (sujeito) particular - o paciente. Constitui o meio de introdução do estudante na atividade clínica e se inicia no quarto período do curso de Medicina da Faculdade de Medicina da UFMG (FM). Assim, este é o momento que o estudante se depara com uma atividade especial, singular, essencial em sua formação - o atendimento de pacientes.

O ensino de semiologia médica sempre foi um desafio. E concorrendo para aumentar sua complexidade no ensino-aprendizagem, merece destaque a mudança curricular na FM, que busca formar um egresso que esteja preparado para atuar na e/ou para a Atenção Primária de Saúde. Assim, nas disciplinas do curso de Medicina respeitam-se os princípios pedagógico-assistenciais da FM, que visam a formação de um médico para uma prática ampliada, que considere o paciente como sujeito, individual e coletivo, valorizando a sua história em suas várias dimensões - biológica, psicológica, social, econômica, cultural e ambiental - promovendo cuidados adequados (para o indivíduo como um todo, efetivo, eficiente e justo), abrangente (para qualquer tipo de problema ou situação) e integrados (com as várias ações em saúde, nos vários níveis). Posto desta forma, a estratégia pedagógica deve ser a da aprendizagem: (a)- centrada no estudante, sujeito ativo e responsável, com apoio do professor como facilitador ou mediador; (b)- fundamentada em problemas levantados em uma prática real, com foco semiótico; (c)- voltada para o "aprender a aprender", compreendendo e construindo o seu processo de desenvolvimento de conhecimento (mental e intelectual), de habilidade (capacidade de fazer alguma operação física ou mental com o conhecimento adquirido) e de atitude (valores); e, (d)- contendo forte caráter de atuação em grupo.

Desde 2014, a coordenação da disciplina de Clínica Médica 1 (CLM 1) da FM da UFMG, reorganizou o processo de ensino-aprendizagem. Foi redefinido o plano de ensino, com a opção por um detalhamento nos objetivos específicos, com estrutura de objetivo por competências. O sistema de avaliação também se transformou, com uma matriz de competências, em que foi definido para cada objetivo o melhor instrumento de avaliação, respeitando uma ponderação somativa que serve para orientar os professores e os alunos quanto à importância relativa. Essas mudanças não visam engessar a prática de ensino, mas dar um pouco de estrutura ou referência a ela. Foram incluídos o portfólio e checklist de prática, para grupo de discussão (GD) e atendimento clínico, para sistematizar o olhar dos docentes para os aprendizes. Cada professor tem a sua forma de estruturar as suas atividades, que são realizadas em ambulatório: atendimento clínico, discussão do atendimento clínico, discussão do registro escrito e discussão dos temas pré-estabelecidos. Todas essas atividades têm supervisão direta do professor. E há uma recomendação forte para que todas as atividades práticas em ambiente de trabalho tenham um momento de feedback, feito entre os pares e o professor. Portanto, o momento é de reformulações, com um currículo novo, ainda em transição, e uma estrutura nova na disciplina de CLM 1.

Este texto resultou de uma análise do material bibliográfico disponível e usado pelos docentes em suas atividades com seus alunos. O objetivo foi realizar uma comparação crítica dos vários textos que discorrem sobre história clínica (anamnese) no contexto da saúde do adulto, que é o eixo curricular onde a disciplina de Clínica Médica 1 (CLM 1) está inserida. Além disso, foi elaborada uma proposta de registro de anamnese para consultas que segue a técnica do método clínico centrado no paciente (MCCP), paradigma adotado pela CLM 1. Acredita-se que este texto possa ser útil para os docentes e alunos dos cursos de Medicina no aprendizado de semiologia médica.

Na leitura dos textos tradicionalmente usados para o ensino de semiologia médica, percebem-se diferenças importantes, que certamente trazem dificuldades e confusões aos jovens aprendizes. Poder-se-ia considerar que tanta diferença ocorre porque há uma mudança de paradigma em curso, mas a essência não foi alcançada e que se encontra na superficialidade do fenômeno. Tanta discrepância nos sugere um desconhecimento ou uma falta de importância. Neste momento, inexiste um padrão, de uso comum. De qualquer modo, isto é um convite a que cada um faça do seu jeito.

Sabe-se que há várias formas de fazer a mesma coisa, tendo aparentemente resultados similares. Todavia, ao se refletir sobre as diferenças e ao se aproximar do fenômeno, percebe-se que estes apenas parecem semelhantes, mas definitivamente não o são. Em toda prática há uma intencionalidade e, portanto, um paradigma subjacente. Práticas diferentes, paradigmas diferentes. Como o objetivo é usar o "método clínico centrado no paciente, na pessoa" (MCCP) como referencial ou paradigma, foi com esta perspectiva que este texto foi desenvolvido. Foram percorridas as várias partes ou etapas da história clínica, analisando as diferenças entre os vários autores. E por fim, a partir do referencial MCCP foi feita uma proposta de uma estrutura de construção da história clínica e do seu registro.

ANÁLISE GERAL DAS ESTRUTURAS DE ENTREVISTA CLÍNICA

É importante destacar que os textos trabalham as etapas da história clínica em geral de modo estanque, muito vinculados a uma ordem de registro, o que é bem razoável. As estruturas ou formatos propostos são fundamentalmente para o registro e servem como um guia para a construção da história clínica. Mas esta deve ser um diálogo, mais fluido, interativo, não uma entrevista estruturada ou um questionário a ser aplicado pelo médico e respondido pelo paciente. Mesmo assim, uma estrutura lógica a ser "seguida" orienta a sua construção. Deve-se encaixar esta estrutura no diálogo/relação médico-paciente e não o contrário, encaixar o diálogo na estrutura.

Não há ainda um modelo aceito e estabelecido de registro adequado ao MCCP. Donelly chama atenção para o fato de a forma de registro determinar, em certo sentido a condução da entrevista e que seria necessário a construção de um novo modelo para dar conta do paradigma do MCCP1. França em sua dissertação de mestrado faz uma validação de um modelo de registro proposto por Donnelly2,3. Embora interessante sua proposta de registro é muito longa e pouco exequível na prática.

As etapas de uma consulta clínica usando o MCCP são: abertura (preparação, rapport inicial, rastreamento da agenda do paciente e negociação da agenda), exploração (perspectivas biomédica ou da doença, pessoal e contextual), exame físico, raciocínio clínico, planejamento (conduta, que inclui negociação do plano, e esclarecimentos) e fechamento (sumarização e verificação de compreensão).

Entre as introduções dos vários textos destaco o de Bates4. Neste se reforça a flexibilidade e o caráter de diálogo da entrevista. Discorre sobre a diferença entre o registro e a entrevista, ou construção da história clínica4,5. Trabalha a "diretividade progressiva". Ela sugere um ciclo ou etapas deste processo. Inicia com uma fase espontânea, seguido por uma busca intencional da preocupação e do significado geral e simbólico do problema para o paciente. A seguir há a fase dirigida, que tem a ver com uma produção de hipóteses, onde o médico elabora perguntas dirigidas para testar sua hipótese4. Adiante, já no desenvolvimento do texto propriamente dito, provavelmente por ser um texto para alunos, ela destaca que a fase dirigida é uma caracterização dos sintomas baseada nos sete componentes e em sua descrição cronológica4. Deste modo, se ajusta aos alunos, que não têm ainda scripts ou exemplares em sua memória, garantindo uma construção mais descritiva do fenômeno. Ela não abandona a produção de hipóteses e os testes, mesmo porque isto é inevitável, incontrolável. Surpreendentemente ela comenta um possível aumento da empatia com o treinamento e o aprendiz gradualmente "responde com sua compreensão às preocupações ...". Sendo assim, Bates propõe a seguinte sequência e estrutura para a entrevista e anamnese: preparação; cumprimentos e contato inicial com identificação (do exame, do paciente, da fonte); confiabilidade, queixas principais (QP) ou rastreamento da agenda do paciente (inclui agenda do médico e negociação); exploração, que se distribui nas partes da anamnese: história do doença atual (HDA), história patológica pregressa (HPP), história familiar (HF), história pessoal e social (HPS) e revisão de sistemas (RS)4,5. A exploração inicia pela fase espontânea, observando-se as pistas emocionais e buscando uma compreensão do impacto e significado da doença. Passa-se então a uma "expansão" ou investigação dos problemas (agenda do paciente), por dois meios: (1)- a produção de hipótese diagnóstica (HD), testando-a, ou (2)- a caracterização dos problemas pelos sete componentes, sempre procurando uma sequência cronológica. Destaca-se que Bates abre ou reserva um momento onde se realiza sistematicamente a busca do significado global e simbólico da doença, ou seja, dá mais ênfase ao adoecer, à enfermidade, à moléstia, ou seja, a doença de uma pessoa. Este momento é o da construção de uma "compreensão compartilhada sob a preocupação do paciente". De modo interessante, propõe uma "negociação do plano", onde se planeja a prosseguimento da avaliação, que inclui exame físico, exames laboratoriais e pareceres de outros profissionais.

O texto de Ribeiro usa a estrutura clássica de anamnese com uma adaptação bem interessante, mesclando história pregressa (HP), história familiar (HF) e história pessoal e social (HPS) em um único tópico "história pessoal, social e familiar". Deste modo, em seu texto percorre as seguintes etapas: cumprimentos, identificação (paciente, exame, acompanhante), motivo da consulta, história de moléstia atual (HMA), revisão de sistemas (RS) e a história pessoal, social e familiar6.

A introdução do texto de Nunes trabalha as "estratégias de diagnóstico" (raciocínio clínico), o que é interessante, pois trabalha a lógica, o racional do processo do pensamento do médico. Comenta que a estratégia de exaustão, onde se visa uma completude, foi ensinada por décadas em muitas escolas médicas, não sendo mais recomendada por ser muito demorada e não considerar as singularidades do indivíduo. Também na introdução, Nunes tende a mostrar a construção da história com foco na doença ou na agenda do médico. Discorre sobre o conceito de problemas também com foco biológico. E não trabalha a ideia de negociação efetiva da agenda. Diz "o médico não pode se esquecer de solucionar ou orientar o paciente naquilo que o preocupa". De qualquer modo, explicita a importância da agenda do paciente. E no tópico "história clínica", antes de desenvolver as suas partes ou sua estrutura, Nunes discorre sobre a importância de se reconhecer a perspectiva da pessoa sobre o seu adoecer, o significado, os mecanismos e as preocupações. Todavia, o seu foco é a doença. Reconhece que o motivo da consulta pode não ser uma doença, mas diz que neste caso não é uma queixa propriamente, e que mesmo assim deve ser registrada (escrita). E isto é contraditório com um dos objetivos da entrevista que cita como principais - avaliar a vulnerabilidade voltada para promover a saúde e prevenir doenças. Um dos exemplos de motivos "não queixa" que cita é fazer uma avaliação periódica de saúde. Outros motivos de consulta nesta categoria são a busca de informações e iniciar atividade física. E a estrutura proposta para anamnese é tradicional com: identificação, queixa principal (QP) ou motivo da consulta, história da moléstia atual (HMA), antecedentes pessoais, hábitos e vícios, antecedentes familiares, história pessoal, familiar e social, revisão de sistemas (RS)7.

A introdução (parte inicial) do texto do professor López é bem objetiva e trabalha os limites da entrevista como método diagnóstico. Seus argumentos são muito centrados na doença. Em geral, seu texto é muito bom, mas para alunos é inadequado, pois não entra em detalhes das etapas. Exige uma experiência para ser mais bem aproveitado. López também segue um esquema clássico de anamnese: identificação, QP, história da moléstia atual (HMA), história pregressa (HP), HF, história psicossocial (HPS) e RS8.

A estrutura de história clínica proposta por Coulehan é a tradicional, com: queixa principal (QP), doença atual, história médica pregressa (HMP), história familiar (HF), história social, perfil do paciente e RS9. A história social ficou inserida em um único tópico "perfil do paciente", onde desenvolve o pessoal e social5. As HMP, HF e RS, que abordam a perspectiva da doença, são considerados como os "aspectos mais "estruturados" ou dirigidos da anamnese10.

Pinho propõe uma estrutura clássica com identificação, QP, história da doença atual, interrogatório sintomatológico, antecedentes pessoais e familiares, hábitos de vida, condições socioeconômicas e culturais11.

O texto de Cerrati Lopes trabalha a consulta e abordagem centrada na pessoa. Inicia mostrando particularidades das consultas na Atenção Primária em Saúde (APS), aonde as razões para as consultas vão além da perspectiva biomédica, podendo ser exclusivamente administrativos e sociais - destaca os que não são classificáveis sob a perspectiva da doença. A saída para isto é compreender a pessoa (paciente) e tornar a consulta como um encontro entre dois especialistas, sendo o paciente o especialista em si mesmo. E neste sentido, ao contrário de outros ambientes ou cenários, as pessoas consultam na APS com agenda própria, pois não vêem encaminhados por outro médico12. Destaca-se que em todo seu texto há um discurso que procura separar radicalmente as consultas feitas na APS das em outros cenários. Não reconhece que há um espectro contínuo de autonomia, inversamente relacionada a gravidade da doença (aspecto biológico). De qualquer modo, ele desenvolve as razões de se usar o MCCP.

Cerrati Lopes não propõe uma sequência para a construção da história clínica. Ele desenvolve os seis componentes (objetivos) do MCCP, que definem de algum modo as etapas, a saber: (1)- explorar a doença e a experiência em estar doente; (2)- entender a pessoa como um todo (3)- elaborar um plano de abordagem de comum acordo entre o médico e o paciente; (4)- incorporar prevenção e promoção; (5)- intensificar a relação médico-paciente (RMP); e, (6)- ser realista. Ele destaca que o MCCP traz para o centro da exploração da doença a experiência da pessoa em adoecer (sentimentos, expectativas, idéias e impactos), bem como a compreensão de quem é a pessoa que adoeceu, explorando os contextos próximo e distante. O MCCP coloca o paciente no centro decisório, com profundo respeito a sua autonomia. Há uma construção conjunta do manejo dos problemas. Com o MCCP integra-se a doença (disease), um arcabouço teórico comum a todos, com a moléstia (ilness), uma experiência de adoecer, única, pessoal e subjetiva da pessoa. Em seu texto não há uma proposta estruturante para a consulta, que organize a construção da história clínica. O que ele desenvolve em seu texto é uma busca sistemática da experiência do adoecer e do entendimento da pessoa inteira, onde a RMP é pautada por uma radicalidade contextualizada da autonomia do paciente. Muito corretamente e algo dissociado do discurso predominante em seu texto, ele afirma "o médico deve ser flexível com relação à abordagem que a pessoa busca ou da qual ela necessita ... A participação da pessoa na tomada de decisão irá variar, dependendo de suas capacidades emocionais e físicas ... ". Ele desenvolve a questão do tempo da consulta, de modo bem interessante. Afirma que bastam 15 minutos para se realizar uma consulta. Talvez, isto possa ser explicado pelo grande número de consultas e pela longitudinalidade do cuidado na APS12.

Oliveira & Pellanda13 em capítulo sobre a consulta ambulatorial tendo como paradigma o MCCP chamam a atenção para a necessidade de que é necessário haver flexibilidade diante das diversas situações colocadas em uma consulta. Colocam que além da identificação e manejo dos problemas atuais, três outras ações médicas devem ser consideradas: o manejo de problemas crônicos ou continuados, a promoção de saúde e a prevenção de doenças e a modificação, quando necessária, do padrão de busca de cuidado pelo paciente. Coerente com o que sugerem, não propõem um modelo para a consulta e consideram que o registro no prontuário pode ser visto como uma extensão da consulta, com o propósito de sintetizá-la e fazer o papel de registro formal, para futuros encontros com o médico ou outro profissional e para respaldo legal ao médico eu prestou o atendimento13. Estes autores elaboraram um texto onde trabalham os objetivos ou tarefas da consulta, bem como princípios, estratégias, duração, condução, que inclui habilidade de comunicação e RMP, e conclusão da consulta.

Quem também aborda esta questão é Bates e Ribeiro, ao discorrer sobre os tipos de construção da história clínica4-6. Bates faz um paralelo entre a abordagem abrangente e a focalizada de modo bem objetivo, contextualizando inclusive para as limitações de tempo4,5. Neste sentido, merece comentar que Pinho em sua introdução esclarece que um aprendiz menos experiente pode e deve demorar horas no processo de entrevistar o paciente: "... horas... obrigado a seguir roteiros longos, pré-estabelecidos; é necessário que seja assim...". E discorre sobre os riscos da "pressa". E isto está de acordo com o seu foco, centrado na doença. E de fato, em seu texto são frequentes palavras que descrevem a história clínica como perfeita, completa e todo11.

Passaremos a analisar cada uma destas etapas da história ou tópicos da anamnese, segundo a perspectiva dos vários autores.

IDENTIFICAÇÃO

Iniciaremos pela "identificação" do paciente

Bates inicialmente nem discorre sobre identificação, escrevendo cumprimentos e contato inicial4. Quando estrutura a anamnese, especifica os dados tradicionais, como idade, sexo, profissão, estado civil, fonte da anamnese, origem do encaminhamento e confiabilidade5. Ribeiro faz um detalhamento dos dados que devem compor a identificação do paciente no exame clínico6. Cerrati Lopes e Coulehan não desenvolvem a identificação do paciente em seus textos9,12.

Pinho alarga a identificação para uma caracterização do perfil sociodemográfico (dados individuais e coletivos). Inclui religião, filiação, filiação a órgãos ou instituições previdenciárias e a planos de saúde. Consideramos que muitos destes dados podem ser melhor trabalhados em uma fase posterior, habitualmente quando se procura caracterizar os aspectos socais e pessoais11. Neste sentido, é interessante comentar que López avança um pouco ao afirmar que é aconselhável estimular o paciente a discorrer sobre si mesmo8. E isto é razoável, pois se trata de um diálogo e o paciente pode se apresentar, desde que esteja confortável e/ou necessite, "abrindo" a consulta com os aspectos pessoais e sociais.

Nunes desenvolve a identificação com detalhamento maior, especialmente na situação familiar, na profissão e ocupação e na religião. Ele recomenda que tal diálogo ocorra neste momento da entrevista, o que se reforça ao se observar o quão é exígua a sua "história pessoal, familiar e social", ou pelo menos o discurso em torno da mesma. De fato, ela afirma que abordar a situação familiar real e o tipo de trabalho logo no início da entrevista é uma boa estratégia para fortalecer a confiança e estabelecer uma boa relação médico paciente7. Temos dúvida quanto a isto, especialmente porque neste momento as pessoas estão se conhecendo e superando suas inibições e seus constrangimentos. É interessante observar que, ao se estabelecer um vínculo de confiança durante a consulta, informações dadas no início, com caráter mais formal ou administrativo, mudam ao final da consulta. Apenas para exemplificar, isto acontece muito frequentemente em relação ao estado civil e às atividades laborativas.

RASTREAMENTO DA AGENDA OU DOS MOTIVOS DA CONSULTA

A seguir, vamos ao rastreamento da agenda do paciente ou identificação dos motivos da consulta, também chamado de queixa(s) principal(is).

Bates desenvolve o conceito de rastreamento da agenda do paciente, onde destaca a palavra preocupação e inclui a agenda do médico e a negociação4,5. Ribeiro não afirma claramente que o médico deve rastrear todos os motivos de modo intencional, e orienta uma negociação caso o paciente tenha muitos problemas6. Talvez fosse mais interessante dizer que diante de "muitos" problemas o mais provável é que tenha um processo ou motivo subjacente principal, que precisa ser elaborado.

López trabalha amplamente este tópico, desenvolvendo um olhar amplo para o paciente e afirma muito corretamente que "as razões pelas quais o paciente procura o médico são as mais diversas: biomédicas, psicológicas, sociais ou mesmo a busca de informação e orientação sobre a sua moléstia". Todavia, a sua última frase deste tópico mostra que o paradigma da doença prevalece: "É possível que o motivo da consulta não seja um distúrbio que o paciente apresenta e sim uma revisão médica ou uma interconsulta. Nestes casos, onde não existe queixa principal (o grifo é nosso) registra-se apenas o motivo da consulta sob este título"8. Também Nunes reconhece que o motivo da consulta pode não ser uma doença, e neste caso não é uma queixa propriamente e que mesmo assim (grifo nosso) deve ser registrada7.

Couleham opta por desenvolver o conceito de "estímulo iatrotrópico" em um texto muito interessante com exemplos e comentários. Afirma que "a queixa principal é a razão principal para que o paciente tenha buscado auxílio médico", mas continua "com frequência, a razão real para a pessoa procurar o médico está embutida em algum outro ponto, longe de sua afirmativa inicial". O estímulo iatrotrópico é a razão real para o paciente ter buscado auxílio em um determinado momento. Ele não trabalha a possibilidade de haver uma agenda, concentrando-se na ideia de um processo que impulsionou o paciente a uma consulta médica9.

Pinho também não desenvolve o rastreamento intencional da agenda do paciente, nem uma negociação. Afirma que se uma pessoa enumerar vários motivos, o médico deve tentar definir a queixa principal e perguntar ao paciente o que o mais incomoda e o levou a procurar assistência médica11. Desta forma ele considera que haja apenas uma queixa principal, iatrotrópica.

Percebemos que os autores não reforçam a ideia de intencionalmente estimular o paciente a apresentar todos os seus motivos da consulta ao se iniciar o diálogo. Por outro lado, vários, a grande maioria estimula que se pergunte se tem algo mais a falar, algum problema, alguma dúvida, entre outros. Em geral, recomendam que isto seja feito após a história da moléstia atual, na transição para o exame físico e quase ao término da consulta. Neste último momento, entendemos que é contraproducente, devendo ser evitado. É como se fosse uma antecipação de um "fenômeno da maçaneta", que resulta quase sempre de uma consulta disfuncional, independentemente se a causa preponderante da disfuncionalidade esteja no paciente ou no médico.

EXPLORAÇÃO DOS MOTIVOS DA CONSULTA OU HISTÓRIA DA MOLESTIA ATUAL

A exploração da doença ou da moléstia atual (ou da agenda do paciente) tem uma fase espontânea seguida de uma fase mais dirigida. Ribeiro dá a entender que a fase dirigida é a anamnese especial ou revisão de sistemas, onde se fala em "completar"6. Não deixa claro que para cada problema após uma fase espontânea e uma exploração do significado geral e simbólico do problema para o paciente, o médico deve explorar o problema a partir de seus scripts e/ou de detalhamento dos sete componentes e sua reconstrução cronológica. Isto se reforça quando descreve os componentes ou características dos sintomas na revisão de sistemas (RS).

Bates discorre sobre a exploração como uma expansão das queixas principais (QP).4,5 Ela esclarece que a exploração se inicia pela fase espontânea, observando-se as pistas emocionais e buscando uma compreensão do impacto e significado da doença. Ou seja, inclui a perspectiva da pessoa - idéias e sentimentos sobre a doença e impacto da doença na vida. Passa-se então a uma "expansão" ou investigação dos problemas (agenda do paciente) por dois meios: (1)- a produção de hipóteses diagnósticas (HD), testando-a, ou (2)- a caracterização dos problemas pelos sete componentes, sempre procurando uma sequência cronológica. Em seu texto inicial sobre a consulta procura explicitar conteúdos desta exploração. Afirma que ela também compreende os dados relevantes da revisão dos sistemas (RS), sejam positivos ou negativos, mas pertinentes ou relacionados à QP. Da mesma forma incorpora na exploração os dados da história pregressa (HP), todavia não necessariamente relacionados à QP (parte algo confusa de seu texto), como medicamentos, alergias e hábitos. Destaca que se devem explorar os fatores de risco de uma QP. Indiretamente ela inclui a HF nesta fase de exploração ou expansão da QP.

Couleham chama a exploração da agenda de doença atual e desenvolve agradavelmente o seu texto todo em torno das habilidades de comunicação, com muitos exemplos9. Ele trabalha mais as habilidades de comunicação do que o conteúdo ou componentes dos problemas.

Pinho define a história da doença atual como registro cronológico e detalhado do motivo da consulta. Traz o conceito de sintoma-guia, que é a manifestação estruturante ou organizadora11. É um texto estruturado na doença.

López discorre extensamente sobre a história da moléstia atual (HMA) - é a parte mais longa de seu texto. Desenvolve as dificuldades na construção da HMA, com destaque para o reconhecimento de associações entre as várias manifestações (sintomas) com o problema principal atual. Trabalha bem os sete componentes dos sintomas. Faz uma discussão bem apropriada do roteiro. Discorre amplamente o processo de exploração da HMA8.

Na história da moléstia atual (HMA) percebe-se que Nunes discorre sobre o registro, seu conteúdo e forma. De qualquer modo, comenta sobre alguns princípios como a exploração da ordem cronológica e do significado da doença para o paciente. Também recomenda que a "técnica da exaustão", que visa a completude, pode ser usada quando não se consegue nexo e/ou quando há imprecisão nas informações7.

REVISÃO DE SISTEMAS OU ANAMNESE ESPECIAL

A revisão de sistemas (RS) ou anamnese especial (AE) tem entendimentos diferentes segundo o autor. Ribeiro coloca a RS após a HMA, afirmando que ela a completa. Traz uma lista de 16 itens para mulheres e 19 itens para homens e afirma que cada item positivo deve ser explorado como na HMA.6

Bates coloca a RS por último, após a HPS, como revisão de sintomas comuns, mas diz que deve ser flexível, podendo ser após HMA, HP ou mesmo no exame físico - neste especialmente se houver poucos sintomas5. Também preconiza o uso de inúmeras perguntas, mas destaca que "a necessidade de perguntas mais detalhadas variará segundo a idade, as queixas, o estado geral do paciente e seu julgamento clínico". Para cada sistema inicia com pergunta geral e aberta e depois passa às específicas, tipo "sim/não" de uma lista.

Entendemos que a RS deve ser o último item da entrevista, pois aborda (expande) toda a história. Ela é melhor dirigida e assim mais eficaz quanto mais se conhece o paciente, sejam dados atuais ou não, relacionados ou não ao problema ou razão da consulta. O seu foco é o da doença, da perspectiva biomédica. A RS pode ser feita ao longo de toda a entrevista (diálogo). Todavia, há limite de tempo que deve ser considerado, e que restringem investigações, especialmente se há muitos problemas a ser abordados. Assim, mais ao final, sabendo das doenças e conhecendo a experiência do adoecer e a pessoa inteira, o médico pode priorizar o que é mais importante e, se for o caso, definir se irá explorar nesta consulta ou em subseqüentes. Deste modo, não há porque seguir mecanicamente uma lista de perguntas ou aspectos a investigar. Pode se definir que aspectos gerais ou sistêmicos, como sono, fome, peso, cansaço e febre, podem sempre ser feitos, se já não forem abordados na HMA. Pode-se percorrer da cabeça aos pés, com perguntas de evocação ou recuperação, que "abre a gaveta" para dados mais relevantes. Uma situação que poderia justificar o uso da RS é quando o médico se depara com doenças ou manifestações raras, onde a estratégia hipotético-dedutiva se torna mais exígua ou ineficaz.

Couleham é a favor que a RS seja feita10. Critica o seu uso como "refúgio" à "insegurança" que leva ao excesso e a busca da completude. Também não pode ser uma "carga", no sentido de uma "obrigação", de uma "formalidade". Ele mostra que ela é "apoio", que ou é "esvaziada" ou é "direcionada" pela HMA ou HP, que chama de doença atual e história da moléstia prévia. Recomenda que a RS deva ser feita por último, pois permite definir os problemas a serem explorados, bem como a melhor técnica semiótica, p e, o grau de direcionamento. Também afirma que com experiência o médico pode fazer a RS no exame físico, que se por um lado aumenta a acurácia, por outro pode gerar ansiedade no paciente. Também questiona a exploração de todas as respostas positivas.

Pinho chama de interrogatório sintomatológico (IS) e diz que é um complemento da HDA, usando-o logo após a mesma. Destaca também que a principal utilidade prática é reconhecer enfermidades que não guardam relação com a doença atual11. Está subjacente a este argumento um não reconhecimento dos limites do examinador. O reconhecimento destas associações é função do conhecimento coletivo e do indivíduo e sobre as doenças e o adoecer. Ele resolve este problema, radicalizando e afirma que o IS é a única maneira de realizar uma boa anamnese e que toda queixa será objetivo de investigação, sendo o IS a parte mais longa da anamnese. Todos estes argumentos mecanicistas são contra o raciocínio e a inteligência do médico.

Lopez reserva pequeno espaço para a RS. Recomenda que deva ser feito por último, ressaltando que isso não é fixo, podendo ser feito após cada um dos tópicos da anamnese. Afirma que a RS completa a HP e a HMA. E continua: é boa para checar informações, sendo muito útil aos estudantes, mesmo tendo menor acurácia, com grande risco de não expressar a realidade. E neste sentido, em função de ser a parte mais dirigida da entrevista, advoga que se façam perguntas gerais para cada sistema8.

Nunes afirma que a RS serve para obter informações quando o médico julgar necessário para dar segurança à hipótese diagnóstica7. É como se fosse lançar mão novamente da "técnica da exaustão" que recomenda na HMA quando as queixas são vagas, imprecisas ou inespecíficas. Recomenda que RS seja a última etapa da história clínica e que tenha um formato de interrogatório. Muito corretamente esclarece que a RS pode não ser necessária e que deve ser individualizada segundo as necessidades do médico para o seu raciocínio.

HISTÓRIA PREGRESSA, PESSOAL, SOCIAL E FAMILIAR.

Vamos abordar agora as histórias pregressa, pessoal, social e familiar. Temos que fazê-lo em conjunto, pois os autores os misturam.

Ribeiro opta por acomodar todos estes tópicos em um único, que denomina "história pessoal, social e familiar"6. Inclui as preocupações do paciente, além do problema de saúde, moradia e relações, família (relações, doenças e repercussões), alimentação (preferência e disponibilidade), trabalho (condições objetivas e subjetivas, bem como perspectivas profissionais); lazer, esportes e cultura; relacionamentos não familiares; hábitos nocivos; religião. Inclui também um tópico estranhamente denominado de "saúde", que acomoda co-morbidades, medicamentos, internações, cirurgias e consultas médicas regulares. Por outro lado, esta opção é interessante, pois não se preocupa com uma separação difícil e artificial entre a doença e o adoecer ou a pessoa que adoece.

Neste sentido, mostrando como é difícil separar estes tópicos, Bates coloca segurança (inclusive a domiciliar) na HP (sua HPP), mas as características do domicílio na HPS4,5. Inclui na história patológica pregressa aspectos de promoção e prevenção, como imunizações, rastreamentos, mudança de estilo de vida. Na verdade o nome atribuído história patológica pregressa (resumido em HP) é inadequado, pois inclui doenças atuais que começaram no passado, não necessariamente anterior a HMA, dita atual, que é a exploração da agenda do paciente (negociada) ou da QP. Estas denominações tradicionais dos tópicos aumentam a imprecisão e o artificialismo destas separações. E neste sentido, merece destacar que Bates inclui na HPP as co-morbidades, que separa em clínicas, cirúrgicas, gineco-obstétricas e psiquiátricas, detalhando-se em cada uma as internações e os tratamentos. E aumentando a imprecisão inclui algumas particularidades gineco-obstétricas, como história obstétrica e menstrual, anticoncepção e atividade e função sexual. Sua HF é tradicional, em busca de doenças em parentes, bem como a ocorrência de doenças comuns. Pode-se comentar que estende a busca até os netos. Entendemos que deva ser feita a exploração de doenças em descendentes de 1ª ou 2ª ordem - isto sob a perspectiva da doença. Assim, na HPP e HF Bates faz o clássico na perspectiva da doença. Já a história pessoal e social (HPS) explora a perspectiva da pessoa e do contexto. Ao incluir neste tópico os "hábitos e estilo de vida saudáveis e de risco" (exercício, dieta, tabagismo, etilismo, suplementos e café), bem como as "medidas de segurança" (uso de capacetes, cintos de segurança, bloqueadores e filtros solares e chapéus) e as práticas alternativas de saúde, os considera sob a perspectiva da pessoa. Todavia, poder-se-ia considerar que estes dados devam compor a perspectiva da doença, do biológico. Em suma, é muito artificial separar a atividade física do prazer e desejo de fazê-la. Mas a forma como nomeia sugere que estes dados deveriam estar na HPP, onde já havia incluído promoção.

Coulehan discorre sobre a história pregressa ou história mórbida pregressa ou história médica pregressa em um texto muito interessante com vários exemplos10. Usa os três nomes, pois além de doenças prévias, inclui aspectos de prevenção. O conteúdo é o tradicional com co-morbidades, hospitalizações, cirurgias, acidentes, número de gravidez, parto e aborto (GPA), imunizações, alergias e medicamentos de uso atual. Trabalha a HF de modo clássico, em um texto longo e com muitos exemplos. Em capítulo separado Coulehan aborda "o perfil do paciente", que inclui o pessoal e o social14. Ele usa também o nome de história psicossocial, habitualmente chamado de história pessoal e social. Neste tópico, expande a entrevista para os aspectos emocionais, filosóficos, sociais e interpessoais - "o ser paciente também como condição psicossocial". Ou seja, aqui, aborda a pessoa que adoece. Afirma que esta perspectiva aumenta sua relevância quanto menos doente (biologicamente) e mais próximo de sua casa. Comenta a questão da completude, desnecessária e impossível, também na HPS, discorrendo o que considera essencial ou básico. Procura as relações da doença com estilo de vida e personalidade (forças e fraquezas). Inclui o impacto da doença. Recomenda que se inicie com uma pergunta aberta "fale-me de você mesmo, sua família, trabalho, enfim...".

Pinho reorganiza HP, HF e HPS em "antecedentes pessoais e familiares, hábitos de vida, condições socioeconômicas e culturais"11. Na verdade, o tópico "antecedentes pessoais" é a HP; "antecedentes familiares" é a HF. Na HF ele inclui o cônjuge. Individualiza os hábitos de vida, como tópico à parte, que poderiam compor HMA, HP e HPS. O tópico "condições socioeconômicas e culturais" é o que mais se aproxima da HPS.

López é bem clássico. Afirma que a HP inclui o passado que não possui relação direta ou de causa-efeito com a moléstia atual8. Também detalha o conteúdo, com alguma variação em relação aos demais, mas também acomoda os dados sob a perspectiva da doença. Há intencionalidade no uso do nome "história pregressa", pois inclui imunizações, sono e hábitos alimentares. De qualquer modo, o foco na HP e HF é o da doença. Denomina a história pessoal e social de história psicossocial. Seu conteúdo é clássico, de contexto social, cultural e econômico, procurando explorar a pessoa que adoece e seu contexto. Todavia, inclui a experiência do adoecer, a percepção do paciente sobre a doença, que entendemos deveria estar na HMA. Também López detalha os aspectos psicológicos e psiquiátricos, incluindo processos patológicos, as doenças. Talvez porque denomina história psicossocial. Estas informações deveriam estar na HP ou RS. Há sempre uma justificativa lógica para cada uma destas formas de distribuir.

Nunes nomeia de "antecedentes pessoais" o que outros chamam de história pregressa ou história médica ou mórbida pregressa7. Seu foco é na doença ou biológico. Além do conteúdo tradicional de doenças, inclui imunizações e padrão de sono. Não inclui hábitos nocivos. Como Pinho, separa os hábitos em um tópico que denomina "hábitos e vícios". Pinho prefere o nome "hábitos de vida", que, além dos saudáveis, contêm os nocivos e, portanto, os vícios11. Nunes denomina de história pessoal, familiar e social ao que outros chamam de história psicossocial (López), perfil do paciente (Coulehan), história pessoal e social (Bates), condições socioeconômicas e culturais (Pinho)8,14,4,5,11. Chama a atenção o fato de desenvolver pouco este tópico e o resume a um apoio à perspectiva da doença ou biológica.

É interessante comentar que há os que consideram que na história pregressa deva estar apenas os dados que pertencem completamente ao passado, sob a perspectiva da doença. Este corte, também nos remete a um artificialismo, oriundo de um rigor ou respeito ao nome do tópico.

REGISTRO EM PRONTUÁRIO

O registro da entrevista está no contexto do prontuário e sua organização. Para o método clínico centrado na pessoa (MCCP) e a prática na Atenção Primária de Saúde é fortemente recomendado o registro em saúde organizado por problemas.

Torres aborda aspectos importantes do formato registro: (1)- aberto, semi-estruturado e estruturado - com parte livre (narrativa) e com parte fechada; (2)- método clínico centrado na doença (MCCD) e MCCP; (3)- à mão ou informatizado; (4)- estruturado por problemas e o por fonte com disposição cronológica.15

Os textos analisados foram organizados em torno da estrutura de registro. É a partir deste arcabouço que se constrói a entrevista clínica. O diálogo é mais fluido e interativo, mas segue uma estrutura lógica e tem seus objetivos, componentes ou fases.

O registro pode ser elaborado simultaneamente ou logo após a consulta. Bates afirma que a entrevista deve ser feita com técnica flexível, sendo que somente após a conclusão da entrevista e do exame é que o médico organiza as informações do diálogo em um registro escrito formal5.

Como López, Nunes faz referências à forma e conteúdo do registro ao longo de todo o seu texto8,7. Ribeiro desenvolve apenas o aspecto do uso do jargão médico no tópico dedicado ao registro, sugerindo evita-lo se não houver segurança no seu significado6.

Proposta de Estrutura para Entrevista Clínica e seu Registro, a Anamnese

Enfim, há muitas explicações racionais para as várias formas de se separar ou distribuir os dados. Há imprecisões que confundem. Tendo o método clínico centrado na pessoa ou paciente (MCCP) como referência (paradigma), seria mais lógico distribuir os dados nos seguintes tópicos: a doença, a experiência do adoecer e a pessoa que adoece e seu contexto. De fato, esta poderia ser a forma de organização durante o diálogo e também de elaboração do registro. Mas é muito geral e não atende a particularidades do fenômeno.

Como foi afirmado não há ainda um modelo aceito e estabelecido de registro adequado ao MCCP. França em sua dissertação de mestrado faz uma validação de um modelo de registro proposto por Donnelly1-3. Este texto irá se ater apenas à anamnese. Donnelly inicia com o "perfil da pessoa", que equivale à identificação e história pessoal contextual. Como já foi comentado, este "excesso inicial" é inadequado, pois mesmo sendo uma proposta para o registro, ele também tem por objetivo guiar a entrevista. A segunda parte ou segmento é "preocupações do paciente", em substituição à(s) queixa(s) principal(is). Não usa o termo agenda que é mais próximo do MCCP. A terceira parte é "história da doença atual", cujo uso já foi suficientemente analisado neste texto. Causa estranheza o uso do termo doença, que reforça o modelo biomédico. Neste sentido, poderia ser mais interessante a palavra enfermidade ou moléstia, como prefere López8. Na estrutura ou modelo de Calgary-Cambridge para a consulta médica, usa-se disease (doença) para a dimensão biomédica do adoecer com foco à fisiopatologia, aos sinais e sintomas; e illness (enfermidade) para a experiência subjetiva do adoecer - sentimentos, preocupações, temores, expectativas. Ou seja, nem doença, nem moléstia, pois isoladamente estes termos alijam ou dão destaque a uma das duas perspectivas. Sendo assim, devem-se evitá-las. Além disso, a palavra atual traz consigo um "artificialismo", que não é razoável quando se trata da complexidade da saúde humana. Este terceiro segmento da anamnese de Donelly de modo interessante inclui todas as informações biomédicas ou biológicas, o que pode ser mais confortável aos mais jovens ou inexperientes. Todavia, mistura eventos, transtornos ou doenças que não necessariamente estão relacionados.

Desta forma, propomos a seguinte estrutura para uma entrevista organizada para o método clínico centrado na pessoa (MCCP), que também pode ser usada para seu registro. Está em letra maiúscula o nome sugerido.

Identificação: além do nome, endereço, idade, sexo, estado civil, ocupação e profissão, inclui fontes de informação e origem do encaminhamento.

Confiabilidade: que será ajustada ou definida à medida que se transcorre a consulta.

Agenda do paciente: inclui preocupação em geral. Inicia com uma fase espontânea com uma primeira pergunta aberta do tipo "em que posso ajudar?" ou "qual o motivo para a sua consulta hoje". O médico estimula o paciente a falar sobre todos os motivos que o fizeram vir à consulta, repetindo com perguntas do tipo: "Algo mais?" e "Alguma preocupação?". Não há restrições quanto aos motivos do paciente.

Agenda negociada: negociação das agendas, do médico e do paciente, tendo no centro a agenda do paciente. O médico procura direcionar os motivos do paciente aos recursos disponíveis, o que inclui a sua competência profissional.

Exploração da agenda negociada: para cada motivo ou problema da agenda negociada sugere-se seguir a seguinte sequência ou conter as seguintes etapas: (a)- fase espontânea ("fale-me sobre..."); (b)- significado global e simbólico do problema para o paciente - a experiência do adoecer - sentimentos (preocupações e temores), expectativas (sobre o que será feito), ideias (compreensão sobre o que está errado) e função (impacto); (c)- fase dirigida, com os sete componentes do sintoma em uma organização cronológica, e/ou exploração a partir dos scripts ou exemplares do médico, mais fundada na expertise do profissional. Para o iniciante, os sete componentes do sintoma são muito úteis, pois diminuem a sensação de insegurança. Contém todos os dados relacionados ou que o médico associou aos tópicos da agenda. Os dados sob a perspectiva biológica ou não biológica (contextual) que não se incluem nesta categoria compõem as próximas partes da anamnese.

História familiar de doença: exploração da história familiar sob a perspectiva da doença. Contempla as doenças de familiares de primeiro grau e as doenças que se repetem na família em geral. Pode explorar ativamente a ocorrência familiar de doenças mais comuns na comunidade.

História pessoal com foco contextual: exploração da história pessoal sob a perspectiva social, cultural e econômica. Ela contempla atividades de vida diária, trabalho, lazer, estudos e formação, religião e crenças espirituais, relacionamentos familiares e não-familiares (inclui relações afetivas e sexuais), moradia ou domicílio, preocupações e estresses, interesses e projetos, experiências marcantes, tradições, situação financeira, sistemas ou fontes de apoio (planos de saúde, família e comunidade, institucionais), segurança, violência.

História pessoal com foco biológico: exploração da história pessoal sob perspectiva da doença ou biológica. Contém duas partes: uma de aspectos gerais e outra mais específica a um sistema ou parte corporal. A parte geral contempla os conteúdos da história pregressa e alguns da revisão de sistemas: dieta, atividade física, cirurgias, internações, acidentes, medicamentos em uso, co-morbidades, alergias, consultas médicas regulares ou relevantes, exames laboratoriais, hábitos nocivos, tratamento, promoção, prevenção (inclui imunizações), reabilitação, peso, apetite e fome, sono e "noite". A parte específica contem os dados que habitualmente estão na revisão de sistemas. Neste momento (parte), o médico faz uma revisão de sua agenda, com foco biológico ou na doença, e define o que deve rever ou complementar. Inclusive, pode não ser feita. Envolve uma escolha do profissional - é intencional. Tende a ser muito dirigida, com perda da acurácia. Quando realizada, recomenda-se que seja feita da "cabeça aos pés" - o médico deve fazer uma pergunta geral do sistema ou parte corporal, seguida da exploração dirigida, se pertinente. Pode ser feita durante o exame físico. Uma tendência é que ganhe importância à medida que a doença seja menos conhecida e/ou que o médico tenha menos expertise.

A entrevista de uma consulta de retorno deve conter as seguintes partes:

Atualização da agenda do paciente: o médico verifica se o paciente está bem e pergunta por novidades - atualização da agenda.

Recomenda-se que se registre na sequência:

Está bem ou não está bem, devido a ... (apenas lista o motivo).

Nega novidades ou há novidades, a saber ... (apenas lista a novidade).

Exploração da agenda: o médico explora o fato do paciente não estar bem e as novidades, se for o caso, bem como os problemas prévios, intencionalmente selecionados pelo médico, tendo como referência o que foi acordado na consulta anterior. Segue a mesma sequência observada na primeira consulta, com fase espontânea, perspectiva da pessoa e seu contexto, e fase dirigida. Faz uma revisão da conduta feita na última consulta. Assim temos os seguintes tópicos:

• Descrição dos motivos de não estar bem, se for o caso.

• Descrição das novidades, se for o caso.

• Descrição dos problemas elencados pelo médico, que deve incluir tratamentos em curso.

• Revisão da conduta feita na última consulta (pode ser descrita no tópico anterior, sempre que possível)

Enfim, os autores fazem uma proposta de registro da história clínica, factível e que serve para orientar a estrutura lógica do diálogo, respeitando o paradigma do MCCP. Esta estrutura tem sido usada pelos autores nos últimos semestres das disciplinas CLM 1 e CLM 3 do curso de Medicina da UFMG. É fundamental que analisemos sistematicamente esta prática, ou seja, os autores irão realizar um estudo com método qualitativo do uso da proposta de registro contida neste texto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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5. Bicley LS, Szilagyi PG. Visão Geral: Exame Físico e Anamnese. In: Bates. Propedêutica Médica. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2010. Cap 1, p 3-24.

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9. Couleham J, Block M. A Anamnese Parte 1: O Começo e a Doença Atual. In: A Entrevista Médica. Porto Alegre: Artes Médicas; 1989. Cap 3. p 60-77.

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14. Couleham J, Block M. A Anamnese Parte 3: O Perfil do Paciente. In: A Entrevista Médica. Porto Alegre: Artes Médicas; 1989. Cap 5, p 98-108. 15. Torres HOG. Prontuário Médico. In: Tratado de Semiologia Médica. Silva TMFL. 1ª Ed. Rio de Janeiro; 2014. Cap 3 p 15-19.