A partir da observação da pintura enumere é descreva os elementos que a compõem

Entrevista concedida por Alexis Iglesias a Xenia Bergman
(verão, 2022)

XB: Qual é o tema central da série apresentada na exposição “Las trampas de la fe”?

AI: Eu fui começando a perceber quais eram as questões que mais me interessavam ao produzir arte. Então, uma das coisas que mais vislumbrei foi a importância que eu dou a todo o processo criativo. O ser humano cria diversos processos para se aproximar tanto do aprendizado quanto da natureza, para entender seu próprio lugar no mundo. Não se trata de atingir uma posição maniqueísta do que é certo ou do que é errado, mas de perceber como o processo criativo se dinamiza desde suas origens: como ele se conecta a outras fontes para criar uma fluidez de resultados; de que maneira tudo o que o homem foi criando na história revelou o verdadeiro interesse que havia, direta ou indiretamente através dele. 

Às vezes, o ser humano cria uma coisa que atrapalha o próprio processo de existir. Essa dinâmica foi a que fui descobrindo na medida que entrei em vários temas do meu processo de trabalho. Sempre tomando como ponto de partida um lado existencial, de uma maneira meio metafísica, vendo como se dava isso na realidade, como é que a realidade tinha uma outra conotação lógica. Lógica que não é pautada nas coisas físicas, ou nas coisas que a gente pode palpar. 

Tomando como exemplo a religião, se estabelece outra lógica: como é que a gente a capta e a percebe, como se dá esse fenômeno criativo que se chama religião e está ligado ao homem? Também me preocupavam as coisas que o homem foi fazendo: objetos, ações, criações. Todo meu trabalho foi se aprofundando mais para eu me deparar, através dessas imagens, com o modo como aconteciam esses processos. Então, isso é o que reflete a série. Essa foi a chave fundamental que eu descobri fazendo arte. Eu não parti de uma ideia a priori para depois fazer o meu trabalho. Ao contrário, foi me observando, tentando ser mais fiel à minha intuição perceptiva da realidade, foi descobrindo isso que surgiu esta série. Por um momento, era uma espécie de avaliação, mas logo se converteu em um lugar de observação. 

O ser humano começa a absorver esse conhecimento, e depois, através de sua maneira de ver o mundo o desenvolve por meio de suas criações. O que mais me interessa é ver como se constrói esse processo: as fontes de onde ele se origina, como ele representa… todo esse sistema de ideias: às vezes de modo coerente, às vezes de modo incoerente. Eu observei que, às vezes, nos processos artísticos de povos muito distantes há muitas coincidências, existe um pensamento criativo muito parecido. Você percebe diferenças e similitudes. Como esses fenômenos se dão é o que me interessa neste trabalho, que acaba sendo como uma arqueologia do processo criativo.

XB: Você está interessado na resposta do espectador diante do seu trabalho ou é indiferente a isso?

AI: Eu estou mais centrado na própria pesquisa das ideias, no corpo imagético que vão ter essas obras, na forma em que vão ser trabalhadas, da minha maneira de fazer esse processo, de manipular ideia e forma, das quais eu entendo que o espectador vai fazer sua própria leitura. Eu dou dicas sobre o que eu quero falar, mas também estou consciente de que o artista não tem controle sobre isso. É algo que está além do seu domínio. Penso que se você fizer uma obra panfletária, mais direta, a leitura, mesmo assim, pode sofrer transformações, porque o ser humano sempre é muito dado a interpretações. Então, não é uma questão central do meu trabalho me preocupar com o que o espectador vê. 

O meu desejo é observar o processo criativo em sentido amplo e, daí, compreender o meu próprio processo: saber quem eu sou, quais são as coisas que me interessam, tudo o que eu preciso aprender para me aproximar do que eu quero, porque a gente não sabe a forma que essa ideia vai ter. Tento usar as experiências artísticas como recurso e não como soluções. Recursos que eu descubro na improvisação, vou escolhendo, vou fazendo. Muitos desses achados foram mais intuitivos. É dizer, eu conheço alguma coisa sobre desenho, sobre pintura, instalação, conheço alguma coisa de literatura, história. Tento combinar a intuição ao conhecimento técnico para que juntos se tornem a minha expressão. A relação que se estabelece entre a obra e o espectador já não está mais no meu domínio. Minha participação chega até a obra, daí para frente, ela tem vida própria.

XB: Passemos agora à particularização. A obra A fonte (2021) sugere, e não há dúvida disso, que como o grande pintor exigia em seu Tratado de pintura, que se estabeleça uma ordem entre os diferentes planos ou cenas da tela, produzindo uma lógica do olhar, que as linhas convergem na figura do filho de Deus, mas aqui, o ponto de convergência é outro. Fale-nos um pouco sobre ele.

AI: No caso do quadro A fonte, eu me aproximo de uma cena que tem conotação religiosa. O que me chama a atenção não é esse sentido religioso, senão a ceia como algo comum. É uma situação na qual pessoas normalmente estão conversando. A ceia como o momento de sentar, comer, dividir, compartilhar… Isso me lembra alguns filmes nos quais as conversas importantes acontecem na hora de jantar. Por isso, não tem os personagens, porque não me interessa tanto o roteiro religioso. O que mais me interessa é que é um momento em que pode convergir situação e processo criativo, que é comum a todos nós.

Eu me aproprio das obras de arte como um estímulo. Às vezes, não me fixo diretamente ao significado dela, mas aos elementos que posso utilizar. Então, para mim, quando escolho a obra de Da Vinci, ela me serve para falar do processo criativo, observo aspectos do que significou para ele como pintor. É uma maneira de partilhar o processo criativo dele. Quando ele pensou e criou essa tela foi motivado a supor que forma teria e é assim que olho pra ela, pintando o quadro eu me senti fazendo a tela de Da Vinci. São sinestesias que aparecem no momento criativo, quando você reproduz uma obra que alguém já fez, só se você a fizer, é que pode entender todo o processo. Assim, procuro uma aproximação com esse processo. São sensações que aparecem no momento criativo. Por isso, me detenho nessas obras, para aproximar as minhas experiências a essas imagens.

XB: Em Acidente da matéria (2021), há um sujeito em um pedestal; à sua frente um sensor e uma grande gota dourada desliza pela circunferência do aparelho inventado. Sabemos que hoje “tal é o artista, tal a escolha do sujeito representado”. Fale-nos sobre esse assunto e essas acomodações que compõem esta tela.

AI: Essa obra se intitula Acidente da matéria. Trata-se de uma reflexão que eu venho fazendo acerca das ideias de Hans Jonas e outros filósofos. Numa aproximação com a filosofia, encontrei uma série de concepções sobre o que somos como seres humanos. Muitas vezes ao me indagar sobre o que era o ser humano diante da natureza, o sujeito parecia a mim como um “acidente da matéria”. Quer dizer, a matéria está ali, ela se mistura, mas ela não conhece a própria existência. 

Então, o “acidente” está exatamente em tentar conhecer a própria existência, e em como pensar essa existência. Como a matéria cria a figura humana. Isso poderia remeter àquela visão de Leonardo da Vinci que trata da importância da observação do ser humano, da sua natureza, das quais parte essa trama: a relação com o lugar onde vive, a relação com o outro e consigo mesmo. Então, esse personagem que está na minha obra provoca um questionamento até de gênero: você não sabe se é feminino ou masculino. Ele é como uma estátua em cima de uma base, dando a ideia do monumento. É justamente esse objeto que o sustenta o que cria uma articulação para tentar olhar a pintura como espécie de construção do sujeito. Ele se apoia na sua observação, ele se acomoda, se sustenta, se equilibra na relação com as coisas e consigo mesmo.

A obra que eu intitulo Acidente da matéria surge para enfatizar um aspecto específico dessa observação de que tudo o que pensamos e o que imaginamos, inclusive Deus, está contemplado no mesmo acidente. O mundo não se importa com o ser humano, desde os planetas até uma flor: tudo existe apesar do ser humano. Ele cria uma relação diferente daquela que a natureza cria com ele. A gente tem um olhar sobre a natureza, como algo belo, mas na verdade ela é incoerente, é violenta, e pode destruir o ser humano, a natureza está no próprio fluxo. E tudo o que a gente inventa sobre natureza, sobre o equilíbrio dela está mais ligado às coisas do ser humano que a ela mesma.

A natureza tem seu próprio ritmo; por outro lado, o ser humano procura redefinir a natureza, dar ordem à diversidade. Essa insistência em percebê-la como um recurso e não como algo que existe, que está no mundo, produz uma distorção na percepção e vai aos poucos mudando tudo. Portanto, na obra Acidente da matéria, estou falando exatamente de um diálogo no qual o ser humano parece isolado, em silêncio, no pedestal que ele criou pra si mesmo. Há que se compreender que são seres e tempos diferentes. Então, tento colocar os elementos ali no quadro e pode ser que talvez sirva para refletir.

XB: Na tela que você intitulou Mal-estar do desejo (2021-2022), há uma nova citação, mas desta vez à pintura As meninas, de Velázquez. Esta obra é uma das mais completas em termos de solução espacial, o que a torna por excelência uma obra barroca. Você trabalha num registo entre a pintura e o desenho. Por quê?

AI: Por um lado, isso tem dois aspectos. Primeiro, a ideia que está implícita no trabalho, que é tudo o que implica essa construção de um ideal do que é moralmente bom para o ser humano, como essa família real. Segundo, é que esse quadro nos fala da dimensão espacial da nossa observação.

Esse quadro sempre me lembra que nós temos um observador fora dele. Porque nós sempre, queiramos ou, estamos de frente e no lugar do rei, que é um lugar que o ser humano indicou como “privilegiado”. Como se o observador sempre estivesse num lugar privilegiado no entendimento do ser humano. Então, são essas ideias as que me mobilizam para me aproximar dessa obra de Velázquez.

Por outro lado, se eu trabalho com o registro da pintura ou do desenho; para mim, o desenho é a ideia. Ele está muito próximo do pensar, do imaginar a maneira como a gente define o espaço. E a pintura é exatamente toda aquela parte sinestésica e sensorial da representação do volume das coisas. A obra utiliza essas duas linguagens. Por isso, acaba sendo um pouco de pintura e um pouco de desenho, como alegorias que conformam esse diálogo eterno entre ideia e forma. Na minha leitura, é uma pintura que apresenta elementos do rascunho e de não acabamento. 

Ela demanda uma distância de observação. Quando você se aproxima do quadro, você vê que as coisas se desmancham. Então, no caso do desenho e da pintura, ela passa por esse processo que fica entre o pensar e o fazer: o desenho é um pensamento do espaço; e a pintura é um fazer o espaço. Eu me aproprio desse processo construtivo de intermediação entre as linguagens.

XB: Os títulos trazem um contraponto, essa é outra das chaves filosóficas com as quais você dosou sua pintura nesta série? Então para você a pintura se confirma como um exercício especulativo? Você pode detalhar o raciocínio que você seguiu e sobre o qual você queria nos alertar?

AI: Não é partir de valores morais, dizendo o que é certo e o que é errado que dinamizo o meu processo criativo. E, sim, observando e percebendo, de uma forma mais aberta, é que me coloca em contato com a realidade do processo criativo: de que forma me conecto com essas referências para criar uma fluidez de resultados que me aproximem mais da construção da minha visão de arte. Muitas vezes, a história dá indícios do que deu certo e o que não deu, mas no fim o próprio fazer me orienta no processo criativo.

Através dos meus trabalhos, eu comecei a perceber a importância que eu dou a toda a estrutura do elemento criativo, e assim vou me aproximando da sua natureza e das variações e possibilidades de interpretações de visão de mundo. Todas essas coisas devem me levar além do que já sei…
Um dos aspectos que dou importância nos meus trabalhos são os títulos das obras, eles abrigam um suposto sentido de complementar. Poder criar uma vibração para criar outras imagens. Isso acontece em muitas obras. Já o título geral da exposição traz um sentido mais fechado e ao mesmo tempo aberto. É como se fosse a própria representação da fé. Porque, ali, nos processos criativos não há nada “real”.

XB: Esses dispositivos que aparecem em sua pintura, com braços mecânicos à la Marcuse, nos permitem ver não apenas os objetos, mas o vínculo entre eles, como se tocasse aquele elo que se estabelece entre o que se conhece e o que se vê. No entanto, sentimos que sabemos pouco sobre esses dispositivos, essas invenções. Você poderia detalhar mais sobre eles?

AI: Nessa indagação que você faz sobre os aparelhos… [O aparelho] é uma alegoria que parte de uma espécie de observação – uma espécie de articulação que o ser humano cria para sentir, para ver, para analisar, para julgar, para se emocionar com todas as coisas. O aparelho corresponde muito mais às ações, como se fosse possível materializá-las fisicamente, ou eu produzisse uma imagem, uma maneira de me aproximar de coisas que são mais abstratas. Quando a gente realiza uma ação, por exemplo, como ler um livro, usa essa articulação. Então essas formas projetadas por mim que aparecem nas esculturas e nas pinturas, são justamente para sentir, para pensar, para perceber.

XB: Na única tela que apresenta uma paisagem, a forma de ordenar as coisas – um mar calmo e realista e um fundo desabado estruturado por “pingos” esquemáticos e modernos – produzem uma retórica. O “mostrado” e o “mostrar” que é a arte se detém na natureza vista de forma atemporal e ao mesmo tempo contemporânea. Afinal, qual é a motivação que opera essa dialética? Por que escolheu aquela paisagem e não outra?

AI: Na tela Experiência do vazio, proponho uma cena de paisagem que possa me servir para representar o ajuste entre expectativa e o contato concreto com a realidade. Escolhi essa paisagem porque ela sugere lugares-limite: o ponto da areia; a linha do horizonte, que se perde entre dois territórios de um lado e de outro; o céu e o mar. Acho que é uma visão tridimensional do lugar onde cada um se encontra, uma experiência individual e afetiva do vazio no universo e de tudo aquilo que criamos para poder existir.

A paisagem que pinto é uma referência a lugares ambíguos e contínuos, a linha do horizonte, que é um lugar completamente incerto, onde a gente imagina as coisas que acontecem após a continuação da curva. É essa relação material entre o mar, o céu, a chuva. Sou um observador desse espaço.

Através dessa obra, proponho uma aproximação contemplativa da criação, da natureza, retirando indícios de imagens ou símbolos de referência humana, aqui procuro colocar o expectador diante de seu lugar existencial, diante dos próprios limites e dos limites físicos naturais. Inclusive, o aparelho desaparece do campo visual, para fazer sentir um respiro e uma espécie de contemplação, deixando para trás os dramas humanos. É um recorte inicial do espaço infinito, do vazio, que não conseguimos ou desejamos enxergar porque estamos sempre ocupados na busca de dar sentido ao que somos, vemos e fazemos.