A Carta de Pero Vaz de Caminha escrita em 1500

Conhecida como o primeiro documento que oficializou a História pós-descobrimento da terra aqui encontrada, posteriormente batizada de Brasil, a Carta em questão foi redigida por Pero Vaz de Caminha, escrivão de Pedro Álvares Cabral, a qual registrou as primeiras impressões do que aqui foi encontrado. Tendo como destinatário D. Manoel I, também conhecido como “O Venturoso ou Bem-Aventurado”, tal documento foi redigido entre os dias 26 de abril e 02 de maio, em Porto Seguro, que somente foi interrompido pelo fato de o escrivão (Caminha) ter interrompido a atividade para dar auxílio ao capitão-mor no sentido de organizar os últimos detalhes para a partida de uma nova frota rumo à Índia.

Ao sinal de partida, apenas um ficou, mais precisamente o navio de Gaspar de Lemos, cujo destino, enviado pelo próprio Cabral, foi Lisboa – fato que fez com que esse documento chegasse às mãos da verdadeira pessoa a quem era destinado (D. Manoel). Vencida essa “guarda”, passou ao poderio da secretaria de Estado, mantendo-se sob a mesma proteção de antes, visto que a notícia do descobrimento não poderia chegar de forma alguma ao conhecimento dos espanhóis.

Passado alguns anos, o documento foi enviado para o arquivo nacional, localizado na Torre do Tombo do castelo de Lisboa. Entretanto, com a vinda da família Real ao Brasil, o diretor do arquivo, José Seabra da Silva, mandou fazer uma cópia, trazendo-a consigo. Tal cópia foi encontrada no Arquivo da Marinha Real do Rio de Janeiro por intermédio do padre Manuel Aires do Casal, cuja intenção foi imprimi-la e torná-la pública, em 1817.

Dessa forma, como a Independência ocorreu em 1822, não era de se surpreender que o documento ganhasse ainda mais notoriedade, tornando-se fonte inesgotável de estudos feitos posteriormente. No que diz respeito aos aspectos estruturais, pode-se dizer que atestamos uma nítida disparidade entre o português falado no início do século XVI e o que hoje permeia as nossas relações cotidianas, visto que alguns termos caíram em desuso e novos se incorporaram ao nosso vocabulário. Em razão disso, retratamos a seguir alguns trechos do documento em questão, só que numa versão adaptada, justamente para facilitar o entendimento. Observe:

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"Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma.Todos andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da largura de dois dedos. Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali. Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora [...]”.

Ao estabelecermos familiaridade com o discurso propriamente dito, em alguns trechos, tais como “Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal.”,registramos que o escrivãonão se porta somente como um mero observador, ou seja, alguém que se mantém imparcial o tempo todo. Ao contrário, por meio dos recursos que utiliza, entre eles a forma engraçada de se referir às índias, comparando-as com as demais mulheres portuguesas, ele revela todo o subjetivismo presente por meio das impressões que o cercava.

Description level

 Item

Reference code

PT/TT/GAV/8/2/8

Date range

1500-05-01

to

Descriptive dates

Vera Cruz

Dimension and support

14 f. (296 x 212 mm); papel

Scope and content

A Carta está datada de Vera Cruz, 1 de Maio e assinada por Pêro Vaz de Caminha, escrivão da feitoria de Calecut, enviado por D. Manuel na armada de Pedro Álvares Cabral, e é o primeiro testemunho da existência de um mundo até então desconhecido dos povos ligados por contiguidade geográfica, o primeiro testemunho de uma realidade que mudou verdadeiramente a face da terra. Foi escrita no período crucial dos Descobrimentos, nos tempos em que a ciência náutica finalmente tornou possível fazer o reconhecimento do nosso planeta. As pessoas referidas na carta são, em primeiro lugar Pedro Álvares Cabral, o responsável pela armada, e outros,mencionados ou não, que faziam parte da expedição, eram capitães experientes, pertencentes a grandes famílias portuguesas, bem como grandes comerciantes florentinos. A Carta faz um relato muito circunstanciado dos costumes dos habitantes da terra, o seu comportamento pacífico, mesmo dócil, suas casas, alimentação, vestuário, vários utensílios como arcos, setas, machados, aves, a cor da terra, os densos arvoredos, a inexistência de animais domésticos. É também de realçar a forma como Caminha se refere aos índios: a três séculos de Rousseau, vemos o olhar maravilhado perante o seu bom primitivismo, a sua ingenuidade, a sua inocência. É como que a antecipação do mito do bom selvagem, que Rousseau teorizou e que originou obras como Atala e René, de Chateaubriand, ou o Guarani, do brasileiro Alencar.

A Carta foi escrita por uma testemunha presencial que acompanhou a armada e participou na expedição feita em terra firme, sob o comando de dois homens experientes, escolhidos por Cabral. Ele tinha a incumbência de transmitir ao rei todas as ocorrências e por isso esteve sempre no centro das operações. O tratado de Tordesilhas tinha sido assinado havia pouco tempo, e urgia comunicar a descoberta do novo mundo. A Carta guarda-se na Torre do Tombo no lugar próprio - nas inquirições, ou seja, os inquéritos a que se procedeu desde os primórdios da nacionalidade para se saber a situação dos bens e direitos da Coroa. A Carta é uma inquirição - de características específicas, decerto, próprias da natureza dos bens a inquirir. As descrições e confrontações habituais, tendo como pontos de referência acidentes geográficos diversos e bens de raiz dos mais diferentes senhorios, dão lugar ao relato dos sucessos primeiro da armada e por fim em terra firme. Em terra firme, a inquirição ganha contornos ímpares, pois que ímpar era a realidade. A Carta é pois um documento de arquivo que, devido à capacidade de observação, à cultura e ao talento do seu autor reúne a característica por excelência da obra literária - o prazer de a ler.

Tem junto 8 documentos:

- um fac-símile da carta executado por processo xerográfico sobre papel Fabriano Ingrés;

- uma fotocópia da carta;,

- duas reproduções parciais em fotocópia;

- uma cópia 'para melhor inteligência' mandada fazer pelo guarda-mor da Torre do Tombo em 19 de Fevereiro de 1773;

- dois autos de autenticação dos fac-símile;

- o certificado de inscrição no Registo da Memória do Mundo pela Unesco, de 29 de Julho de 2005.

Access restrictions

Documento sujeito a autorização para a consulta e a horário restrito.

Physical location

Gavetas, Gav. 8, mç. 2, n.º 8

Language of the material

Português

Alternative form available

Cópia microfilmada. Portugal, Torre do Tombo, mf. 422

Cópia em formato digital.

Related material

Relação sucessora:

Portugal, Torre do Tombo, Reforma da Gavetas, liv. 13, f. 43.

Publication notes

"Alguns documentos do Archivo Nacional da Torre do Tombo ácerca das navegações e conquistas portuguezas publicadas por ordem do governo de Sua Magestade Fidelissima ao celebrar-se a comemoração quadricentenaria do descobrimento da America. Íntegra: p. 108 a 121. Exemplar existente na Biblioteca da Torre do Tombo, 910.4; SV 3495 - SV 3496; DEP. 673/09 CO. Oferta de José Ramos Coelho, Prospero Peragallo e Xavier da Cunha a João Pedro da Costa Basto, em Lisboa, a 28 de Outubro de 1892.
A CARTA DE PÊRO VAZ DE CAMINHA [ed lit.]. Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, coord. Joaquim Romero Magalhães, João Paulo Salvado, rev. José Virgílio Pissarra. Lisboa : C.N.C.D.P., 2000. Exemplar existente na Torre do Tombo, Biblioteca, 358/07.
A Carta de Pero Vaz de Caminha: documentos e ensaios sobre o achamento do Brasil. São Paulo (DBA Artes Gráficas, 1999. Exemplar existente na Torre do Tombo, Biblioteca, 910.4(093).
CAMINHA, Pêro Vaz de - A carta de Pero Vaz de Caminha. Estudo critico de J. F. de Almeida Prado, texto e glossário de Maria Beatriz Nizza da Silva . Rio de Janeiro: Agir Ed., 1965.
CAMINHA, Pêro Vaz de - A carta de Pero Vaz de Caminha. Estudos Manuela Mendonça; Margarida Garcez Ventura ; pref. Joaquim Veríssimo Serrão. 1ª ed.. Ericeira: Mar de Letras, 1999. A visão do paraíso: comemorações dos 500 anos do achamento do Brasil. CNCDP ANTT. Texto em braille. ISBN 972-8379-21-8. Exemplar existente na Torre do Tombo, Biblioteca, 665/06.
CAMINHA, Pero Vaz - Carta de Pêro Vaz de Caminha : reprodução fotográfica. Archivo Nacional da Torre do Tombo ; fot. José Maria da Silva. Lisboa: Photographia Portugueza, 1900. Exemplar disponível na Torre do Tombo, Biblioteca SV 4661.
CORTESÃO, Jaime - A carta de Pero Vaz de Caminha . Rio de Janeiro: Livros de Portugal, imp. 1943. V, 351, [4] p. ; 22 cm. - (Clássicos e contemporâneos ; 1) . - Contêm fac-símile da Carta de Pero Vaz de Caminha. Exemplar existente na Torre do Tombo, Biblioteca,
Exposição Auto do Nascimento, Lisboa, Palácio de Belém, Dezembro 1999/Janeiro 2000 - Auto do Nascimento : leituras da Carta de Pêro Vaz de Caminha e outros tesouros. [Lisboa]: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses : Portugal Brasil 1500 2000, [1999]. Exemplar existente na Torre do Tombo, Biblioteca, CE 326.
OS PRIMEIROS 14 DOCUMENTOS RELATIVOS À ARMADA DE PEDRO ÁLVARES CABRAL. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.
PAULA, António Neto de - Os alimentos transportados pela armada de Pedro Álvares Cabral, segundo a Carta de pero Vaz de Caminha. Teresina : Instituto Dom Barreto, 2000. Exemplar existente na Torre do Tombo, Biblioteca, 910.4.
Simões, Henrique Campos - O achamento do Brasil: A carta de pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel. Salvador : Editus : EGFA, 1999. ISBN 85-86485-60-8. Exemplar disponível na Torre do Tombo, Biblioteca 1420/06.
UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC, CULTURAL ORGANIZATION - Memory of the world: the treasures that record our history from 1700 BC to the present day. Gasglow; Paris: Collins; UNESCO, 2012. 607 p. ISBN 978-0-00-7482279-5; 978-92-3-104237-9. p. 159. Exemplar disponível na Torre do Tombo, Biblioteca 930.25 MEM.
VITERBO, Sousa - Pero Vaz de Caminha e a primeira narrativa do descobrimento do Brasil: notícia historica e documental. Lisboa: Typographia Universal, 1902. Exemplar disponível na Torre do Tombo, Biblioteca SV 1413 (7).

Notes

Título atribuído.

A Carta de Pêro Vaz de Caminha foi inscrita no Registo da Memória do Mundo, Programa da UNESCO, por recomendação do respectivo Comité Internacional Consultivo, reunido na China de 13 a 16 de Junho. (informação oral recebida dia 21 de Junho de 2005 da Comissão Nacional da UNESCO e notícia do mesmo dia no site da UNESCO //portal.unesco.org.

Em 22 de Abril de 2013, na Torre do Tombo, foi apresentada e recitada 'A carta de Pedro Vaz de Caminha', projecto musical e composição de Rui Castilho de Luna.

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Registo Memória do Mundo inscrito em 2005.

Creation date

08/07/2010 00:00:00

Last modification

06/07/2022 11:59:25

Qual foi a tarefa da Carta de Pero Vaz de Caminha em 1500?

Sua tarefa era compor diários de bordo relatando o percurso das caravelas de Cabral e as descobertas no novo continente. Retrato de Pero Vaz de Caminha.

O que tá escrito na Carta de Pero Vaz de Caminha?

Conteúdo da Carta Ele documenta a composição física à primeira vista do território. Além disso, narra o episódio do desembarque dos portugueses na praia, o primeiro encontro entre os índios e os colonizadores, e a primeira missa realizada no Brasil.

Por que a carta de Pero Vaz de Caminha escrita em 1500 é considerada como um dos documentos fundadores da terra Brasilis?

(Uff) A "Carta de Pero Vaz de Caminha", escrita em 1500, é considerada como um dos documentos fundadores da Terra Brasilis e reflete, em seu texto, valores gerais da cultura renascentista, dentre os quais destaca-se: a) a visão do índio como pertencente ao universo não religioso, tendo em conta sua antropofagia; b) a ...

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