O que e lugar de fala

Filósofos, militantes e pesquisadores explicam o conceito, o situam no tempo e analisam sua influência pela internet e em movimentos sociais

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Lugar de fala é um conceito que tem permeado as discussões e debates atuais quando se refere a minorias e experiências sociais. Essencialmente, refere-se a autoridade que uma pessoa possui para falar sobre a sua situação social enquanto pertencente a um grupo minoritário, seja étnico, de gênero, religioso, político etc. A ideia central no Lugar de Fala é entender que, mesmo que diferentes pessoas possam compreender situações sociais e teorizar sobre as mesmas, quem possui argumentos de autoridade sobre essas situações são os grupos que possuem experiências com essas realidades.

O Lugar de fala costuma ser um lugar social de prática discursiva associada a experiências sociais especificas e, em geral, relacionadas a algum tipo de opressão ou de iniquidade social. Assim, é muito comum que a ideia de lugar de fala seja utilizada por minorias. Para se entender se uma pessoa se encaixa em uma minoria, é necessário verificar a construção social em torno do termo e dos grupos aos quais a pessoa pertence. As minorias sociais podem ou não ser grupos em minorias numéricas, mas se referem a grupos cuja ação social é diminuída e seu acesso a cidadania de alguma forma cerceado.

“Minoria é uma categoria de indivíduos considerados merecedores de tratamento desigual e humilhante simplesmente porque são identificados como a ela pertencentes. Minorias em geral são definidas em termos de características atribuídas de status, tais como raça, sexo e meios formativos étnicos ou religiosos, bem como de status adquirido, como orientação sexual.” (JOHNSON, 1997, p.149).

Assim, diferentes grupos sociais podem ser considerados minorias devido a sua experiência social com o tratamento desigual. O lugar de fala se relaciona com estes grupos quando é necessário que se debata essa situação social. Esse conceito pode ser utilizado tanto para respeitar uma situação social, ao se reconhecer que outras pessoas podem falar mais a respeito de situações que experienciam do que aquelas que as estudam teoricamente. Ou pode ser utilizado no sentido de reivindicar uma situação de respeito da minoria proveniente, no sentido de não se falar pela pessoa ou sobre a pessoa e sua própria situação.

Como as minorias sociais costumam ser grupos tratados com desigualdade é comum que a fala destes grupos não seja respeitada por grupos considerados hegemônicos. Um grupo hegemônico é um grupo que controla as situações sociais que fazem com que as minorias sejam tratadas com desigualdade. Não necessariamente essa atitude de controle e de poderes é consciente, muitas vezes está relacionada a perpetuação de práticas sociais aprendidas e a posturas que condizem com benefícios sociais deste tratamento desigual.

I rely on a Gramscian (1971) conceptualization of hegemony to understand the process by which the ruling race attains consensus of subordinated groups. The dominant group controls the construction of reality through the production of ideologies or “knowledge” (Foucault 1977 [1975]) that circulate throughout society where they inform social norms, organizational practices, bureaucratic procedures, and commonsense knowledge. In this way the interests of the oppressors are presented as reflecting everyone’s best interests, thereby getting oppressed groups to accept the dominant group’s interests as their own and minimize conflict [...] (PYKE, 2010, p.556)

Fio-me em uma conceitualização da hegemonia gramsciana (1971) para entender o processo pelo qual a raça dominante alcança consenso de grupos subordinados. O grupo dominante controla a construção da realidade através da produção de ideologias ou “conhecimento” (Foucault 1977 [1975]) que circulam por toda a sociedade onde informam normas sociais, práticas organizacionais, procedimentos burocráticos, e conhecimento do senso comum. Dessa maneira, os interesses dos opressores são apresentados como refletindo os melhores interesses de todos, fazendo com que os grupos oprimidos aceitem os interesses do grupo dominante como seus e minimizem os conflitos. [Em tradução livre]

As minorias sociais podem ser minorias étnico-raciais, de gênero, devido a deficiências, idades ou geracionais, por acessos socioeconômicos, orientação sexual etc. É comum o debate atual sobre o cuidado com as falas pois existem muitas minorias. A ideia é que o lugar de fala das minorias, hoje, é utilizado para que se possa discutir, dialogar e se posicionar sobre a própria situação social. Desta forma, os desconfortos causados pelos discursos hegemônicos não são mais tolerados pelos grupos minoritários, visto que eles possuem respaldo legal na Constituição Federal, art. 5º, e nos Direitos Humanos, pelos princípios de igualdade e dignidade da pessoa humana.

Um exemplo dessa situação é a criação de conceitos que evidenciam quando o lugar de fala é tomado da minoria a que se refere, como o conceito de mansplaining pode ser usado. Mansplaining é um conceito utilizado por mulheres quando um homem insiste em lhes explicar algo óbvio como se fosse algo extremamente inacessível para essa pessoa. O mansplaining pode ser usado também para que o homem explique para a mulher a situação que ela mesma está vivenciando, tomando-lhe seu lugar de fala. Como dito, muitas vezes intenção da pessoa que usurpa o lugar de fala de uma minoria é ajudar ou dar sua opinião sobre o assunto. A crítica realizada pelas minorias é que a fala dos grupos minoritários se basta para explicar sua vivencia, não necessitando da reafirmação de discursos hegemônicos.

Assim, a ideia de lugar de fala se posiciona no debate atual como um lugar político, autônomo e de voz que busca uma posição de igualdade entre a criação de discursos. Evitando, dessa forma, a reprodução de estruturas de dominação de discursos e de práticas sociais que marginalizem as minorias.

Referências:

PYKE, Karen D. What is internalized racial oppression and why don't we study it? Acknowledging racism's hidden injuries. Sociological Perspectives, v. 53, n. 4, p. 551-572, 2010.

JOHNSON, Allain G. Dicionário de Sociologia: Guia prático da Linguagem Sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

Lugar de fala é um conceito com múltiplas origens e usado em diferentes contextos. Na análise do discurso de vertente francesa, é utilizado por autores como Bourdieu[1], Foucault[2], Butler e Orlandi[3]. Estes autores falam das relações de poder presentes nos diferentes tipos de discurso de acordo com seus enunciadores, e a posição ocupada enquanto o discurso é enunciado.

No Brasil, o termo foi popularizado através de seu sentido utilizado pela filósofa Djamila Ribeiro, em seu livro O que é lugar de fala?.[4] Segundo a autora, embora não negue o aspecto individual, o lugar de fala confere uma ênfase ao lugar social ocupado pelos sujeitos numa matriz de dominação e opressão, dentro das relações de poder, ou seja, às condições sociais (ou locus social) que autorizam ou negam o acesso de determinados grupos a lugares de cidadania. Trata-se, portanto, do reconhecimento do caráter coletivo que rege as oportunidades e constrangimentos que atravessam os sujeitos pertencentes a determinado grupo social e que sobrepõe o aspecto individualizado das experiências.[4]

Conforme Djamila Ribeiro, desigualdade de oportunidades a que diferentes grupos são submetidos perpassa, também, a maneira de conhecer, bem como a sistematização desses conhecimentos, ou seja, as epistemologias. "As experiências desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado, além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente. Isso, de forma alguma, significa que esses grupos não criam ferramentas para enfrentar esses silêncios institucionais, ao contrário, existem várias formas de organização políticas, culturais e intelectuais. A questão é que essas condições sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produções."[4]

Djamila Ribeiro entende que o conceito de lugar de fala tem ocupado um lugar central nos debates promovidos pelos feminismos, sobretudo no que diz respeito ao Feminismo Negro e à intersecção entre as categorias gênero, raça e classe.[4] Este conceito, no entanto, também é empregado, com diferentes conotações, por outras áreas, tais como a Comunicação e o Direito.

De acordo com Djamila Ribeiro, uma breve retrospectiva histórica permitiria resgatar as reflexões propostas por feministas e intelectuais negras que resultaram na formulação atual do termo.[4]

Com base nisso, Djamila Ribeiro[4] defende a necessidade do “deslocamento do pensamento hegemônico e a ressignificação das identidades, sejam de raça, gênero, classe para que se pudesse construir novos lugares de fala com o objetivo de possibilitar voz e visibilidade a sujeitos que foram considerados implícitos dentro dessa normatização hegemônica.”[4][5]

Enquanto o conceito de lugar de fala proposto por Djamila Ribeiro expresse um ponto de vista estruturalista da sociedade, existem outras definições a partir deste termo.

Dentro da pesquisa acadêmica, lugar de fala ou local de fala de um pesquisador, expressa quais as suas influências epistemológicas, sua formação, a formação de seus orientadores influenciam sua produção acadêmica. A ideia expressa não é criticar sua posição ocupada na sociedade, mas compreender qual capital simbólico ele detêm dentro da comunidade acadêmica e exercitar a reflexão sobre a produção acadêmica. O lugar de fala é muito debatido através de pesquisas exploratórias ou de estado da arte.

Márcia Franz Amaral define o termo lugar de fala como “a representação das posições sociais e da posse de capital simbólico dos agentes sociais envolvidos, principalmente do jornal e os leitores, que geram Modos de Endereçamento específicos”.[6]

No Direito, o lugar de fala por vezes é percebido conceitualmente como um resgate aos argumentos ad hominem, tidos como falácias, o que significaria dizer que, quando os movimentos sociais posicionam-se contrários aos discursos sobre a opressão não enunciados pelos próprios oprimidos, de certa maneira eles atacariam diretamente o interlocutor do discurso, colocando em dúvida o caráter do enunciador e a validade da argumentação a partir disso, retomando e legitimando a noção de argumento “ad hominem abusivo”.[7]

Segundo o filósofo Pablo Ortellado, "(…) o lugar de fala indiretamente reforça na esquerda os argumentos “ad hominem”, interrompendo uma tradição progressista de racionalismo esclarecido. Os argumentos “ad hominem” são falácias condenadas desde a antiguidade clássica porque desqualificam quem fala para não precisar discutir o teor do que diz o adversário. Quando o movimento social condena discursos sobre a opressão que não são enunciados pelos próprios oprimidos, de certa maneira ele resgata e legitima uma modalidade de argumento ad hominem."[8]

De acordo com o professor Paulo Cruz, o lugar de fala se baseia em duas premissas: a primeira seria a premissa de que “nosso lugar no mundo determinaria nossa percepção do mundo e nossas ideias sobre o mesmo”. A segunda premissa seria a de que “nosso lugar no mundo tornaria nossas proposições (argumentos) sobre nossa própria situação automaticamente verdadeiras e válidas”. O professor discorda das duas premissas. [9][10] Segundo ele, a primeira premissa seria uma herança marxista segundo a qual nossa posição social determinaria nossa consciência e ideias. Já a segunda seria herdeira da falácia Argumentum ad hominem, pois cria uma relação entre características pessoais de quem argumenta e a veracidade e validade dos argumentos apresentados.

Outros intelectuais de esquerda também têm criticado o uso do conceito, tais como Antonio Risério, Jessé Souza[11] e Renato Janine Ribeiro.[12]

  • Teoria do ponto de vista
  • Perspectiva cognitiva
  • Minoria (filosofia)

  1. 1930-2002., Bourdieu, Pierre,. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. [S.l.: s.n.] ISBN 8571395306. OCLC 953458066 
  2. Foucault, Michel (1972). A arqueologia do saber. [S.l.]: Petrópolis: Vozes 
  3. Alós, Anselmo Peres (14 de dezembro de 2012). «ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios & procedimentos. 8 ed. Campinas: Pontes, 2009. 100p.». Signum: Estudos da Linguagem. 15 (3). 389 páginas. ISSN 2237-4876. doi:10.5433/2237-4876.2012v15n3p389 
  4. a b c d e f g RIBEIRO, Djamila (2017). O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento. 112 páginas 
  5. LIMA, Ana Nery Correia. «MULHERES MILITANTES NEGRAS: a interseccionalidade de gênero e raça na produção das identidades contemporâneas» (PDF). II CONINTER. Consultado em 9 de dezembro de 2018 
  6. AMARAL, Márcia Franz (2005). «Lugares de Fala: um conceito para abordar o segmento popular da grande imprensa». Contracampo. Consultado em 9 de dezembro de 2018 
  7. HEGENBERG, Leônidas (2009). Argumentar. Rio de Janeiro: E-papers. pp. 400p 
  8. MOREIRA, Matheus; DIAS, Tatiana (16 de janeiro de 2017). «O que é 'lugar de fala' e como ele é utilizado no debate público». Consultado em 15 de dezembro de 2018 
  9. Cruz, Paulo. «Lugar de fala, ou – de novo: mais materialismo marxista - Paulo Cruz». QOSHE (em bretão). Consultado em 9 de agosto de 2019 
  10. Lugar de Fala - Por Paulo Cruz, consultado em 9 de agosto de 2019 
  11. Souza, Jessé (2021). Como o racismo criou o Brasil 1. ed ed. Rio de Janeiro, RJ: Estação Brasil. pp. 12–31. ISBN 978-65-5733-010-4. OCLC 1266212101  !CS1 manut: Texto extra (link)
  12. «Lugar de fala é instrumento para fascismo identitário» . Folha de S. Paulo. 21 de Dezembro de 2019 

  • As armadilhas do "lugar de fala" na política contemporânea, Geledés.
  • O que é ‘lugar de fala’ e como ele é utilizado no debate público, Nexo Jornal.
  • As aporias do lugar de fala: como a política identitária afetou a esquerda, UFG.

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