O que o autor quis dizer ao escrever o senhor de engenho e título a que muitos aspiram

Ano: 1711

 Autor: Pe.André João Antonil

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Obra (original): //objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasraras/or_cofre3_37.pdf

Texto Digitalizado : //www.geocities.com/Athens/Column/8413/antonil.html

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PRIMEIRA PARTE

Cultura e opulência do Brasil na lavra do açúcar.

Engenho real moente e corrente

TRATA-SE:

·          Do senhor do engenho do açúcar, dos feitores e outros oficiais que nele se ocupam, suas obrigações e salários.

·          Da moenda, fábrica e oficinas do engenho e do que em cada uma delas se faz.

·          Da planta das canas, sua condução e moagem e de como se faz purga e encaixa o açúcar no Recôncavo da Baía no Brasil para o Reino de Portugal e seus emolumentos.

PROÉMIO

            Quem chamou às oficinas em que se fabrica o açúcar engenhos acertou verdadeiramente no nome. Porque quem quer que as vê e considera com a reflexão que merecem é obrigado a confessar que são uns dos principais partos e invenções do engenho humano, o qual, como pequena porção do divino, sempre se mostra no seu modo de obrar admirável. Dos engenhos, uns se chamam reais, outros, inferiores, vulgarmente engenhocas. Os reais ganharam este apelido por terem todas as partes de que se compõem e todas as oficinas perfeitas, cheias de grande número de escravos, com muitos canaviais próprios e outros obrigados à moenda, e principalmente por terem a realeza de moerem com água, à diferença de outros, que moem com cavalos e bois e são menos providos e aparelhados, ou pelo menos com menor perfeição e largueza, das oficinas necessárias e com pouco número de escravos para fazerem, como dizem, o engenho moente e corrente. E porque algum dia folguei de ver um dos mais afamados que há no Recôncavo à beira-mar da Baía, a quem chamam o engenho de Sergipe do Conde, movido de uma louvável curiosidade, procurei, no espaço de oito ou dez dias que aí estive, tomar notícia de tudo o que o fazia tão celebrado e quase rei dos engenhos reais. E valendo-me das informações que me deu quem o administrou mais de trinta anos com conhecida inteligência e com acrescentamento igual à indústria e da experiência de um famoso mestre do açúcar, que cinquenta anos se ocupou neste ofício com venturoso sucesso e dos mais oficiais de nome, aos quais miudamente perguntei o que a cada qual pertencia, me resolvi a deixar neste borrão tudo aquilo que na limitação do tempo sobredito apressadamente, mas com atenção, ajuntei e estendi com o mesmo estilo e modo de falar claro e chão que se usa nos engenhos, para que os que não sabem o que custa a doçura do açúcar a quem o lavra o conheçam e sintam menos dar por ele o preço que vale, e quem de novo entrar na administração de algum engenho tenha estas notícias práticas dirigidas a obrar com acerto, que é o que em toda a ocupação se deve desejar e intentar. E, para maior clareza e ordem, reparti em vários capítulos tudo o que pertence a esta droga e a quem por ela e nela trabalha, começando, depois de relatar as obrigações de cada qual, desde a primeira origem do açúcar na cana até sua cabal perfeição nas caixas, conforme o meu limitado cabedal, que pelo menos servirá para dar a outros, de melhor capacidade e pena mais ligeira e bem aparada, algum estímulo de aperfeiçoar este embrião. E se alguém quiser saber o autor deste curioso e útil trabalho, ele é um amigo do bem público chamado o Anónimo Toscano.

LIVRO I

CAPITULO I

Do cabedal que há-de ter o senhor de um engenho real

     O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for qual deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho, quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino, porque engenhos há na Baía que dão ao senhor quatro mil pães de açúcar e outros pouco menos, com cana obrigada à moenda, de cujo rendimento logra o engenho ao menos a metade, como de qualquer outra que nele livremente se mói, e, em algumas partes, ainda mais que a metade.

     Dos senhores dependem os lavradoress que têm partidos arrendados em terras do mesmo engenho, como os cidadãos dos fidalgos, e quanto os senhores são mais possantes e bem aparelhados de todo o necessário, afáveis e verdadeiros, tanto mais são procurados, ainda dos que não têm a cana cativa, ou por antiga obrigação, ou por preço que para isso receberam.

     Servem ao senhor do engenho em vários ofícios, além dos escravos de enxada e foice que têm nas fazendas e na moenda, e fora os mulatos e mulatas, negros e negras de casa, ou ocupados em outras partes, barqueiros, canoeiros, calafates, carapinas, carreiros, oleiros, vaqueiros, pastores e pescadores. Tem mais cada senhor destes necessariamente um mestre de açúcar, um banqueiro e um contrabanqueiro, um purgador, um caixeiro no engenho e outro na cidade, feitores nos partidos e roças, um feitor-mor no engenho, e, para o espiritual, um sacerdote seu capelão, e cada qual destes oficiais tem soldada.

     Toda a escravaria (que nos maiores engenhos passa o número de cento e cinquenta e duzentas peças, contando as dos partidos) quer mantimentos e farda, medicamentos, enfermaria e enfermeiro, e para isso são necessárias roças de muitas mil covas de mandioca. Querem os barcos velame, cabos, cordas e breu. Querem as fornalhas, que por sete ou oito meses ardem de dia e de noite, muita lenha e para isso há mister dois barcos velejados para se buscar nos portos, indo um atrás do outro sem parar e muito dinheiro para a comprar, ou grandes matos com muitos carros e muitas juntas de bois para se trazer. Querem os canaviais também suas barcas e carros com dobradas esquipações de bois; querem enxadas e foices; querem as serrarias machados e serras; quer a moenda de toda a casta de paus de lei de sobresselente e muitos quintais de aço e de ferro. Quer a carpintaria madeiras selectas e fortes para esteios, vigas, aspas e rodas e pelo menos os instrumentos mais usuais, a saber, serras, trados, verrumas, compassos, regras, escopros, enxós, goivas, machados,martelos, cantis e junteiras, pregos e plainas. Quer a fábrica do açúcar paróis e caldeiras, tachos e bacias e outros muitos instrumentos menores, todos de cobre, cujo preço passa de oito mil cruzados, ainda quando se vende não tão caro como nos anos presentes. São finalmente necessárias, além das sanzalas dos escravos, e além das moradas do capelão, feitores, mestre, purgador, banqueiro e caixeiro, uma capela decente com seus ornamentos e todo o aparelho do altar e umas casas para o senhor do engenho com seu quarto separado para os hóspedes que no Brasil, falto totalmente de estalagens, são contínuos, e o edifício do engenho, forte e espaçoso, com as mais oficinas e casa de purgar, caixaria, alambique e outras coisas que, por miúdas, aqui se escusa apontá-las e delas se falará em seu lugar.

     O que, tudo bem considerado, assim como obriga a uns homens de bastante cabedal e de bom juízo a quererem antes ser lavradores possantes de cana com um ou dois partidos de mil pães de açúcar, com trinta ou quarenta escravos de enxada e foice, do que ser senhores de engenho por poucos anos com a lida e atenção que pede o governo de toda essa fábrica, assim e para pasmar como hoje se atrevem tantos a levantar engenhocas, tanto que chegaram a ter algum número de escravos e acharam quem lhes emprestasse alguma quantidade de dinheiro, para começar a tratar de uma obra de que não são capazes por falta de governo e de agência e muito mais por ficarem logo na primeira safra tão empenhados com dívidas que na segunda ou terceira já se declaram perdidos, sendo justamente causa que os que fiaram deles dando-lhes fazenda e dinheiro também quebrem e que outros zombem da sua mal fundada presunção, que tão depressa converteu em palha seca aquela primeira verdura de uma aparente, mas enganosa, esperança. E ainda que nem todos os engenhos sejam reais, nem todos puxem por tantos gastos quantos até aqui temos apontado, contudo entenda cada qual que, com as mortes e fugidas dos servos e com a perda de muitos cavalos e bois e com as secas que de improviso apertam e mirram a cana e com os desastres que a cada passo sucedem, crescem os gastos mais do que se cuidava. Entenda também que os pedreiros e carapinas e outros oficiais desejosos de ganhar à custa alheia lhe facilitaram tudo de tal sorte que lhe parecerá o mesmo levantar um engenho que uma sanzala de negros e, quando começar a ajuntar os aviamentos, achará ter já despendido tudo o que tinha antes de se pôr pedra sobre pedra e não terá com que pagar as soldadas, crescendo de improviso os gastos como, por causa das enxurradas, os rios.

     Também, se não tiver a capacidade, modo e agência que se requer na boa disposição e governo de tudo, na eleição dos feitores e oficiais, na boa correspondência com os lavradores, no trato da gente sujeita, na conservação e lavoura das terras que possui e na verdade e pontualidade com os mercadores e outros seus correspondentes na praça, achará confusão e ignomínia no título de senhor de engenho, donde esperava acrescentamento de estimação e de crédito.

     Por isso, tendo já falado do que pertence ao cabedal que há-de ter, tratarei agora de como se há-de haver no governo e primeiramente da compra e conservação das terras e seus arrendamentos aos lavradores que tem e, logo, da eleição dos oficiais que há-de admitir ao seu serviço, apontando as obrigações e soldadas de cada um deles, conforme o estilo dos engenhos reais da Baía; e ultimamente do governo doméstico da sua família, filhos e escravos, recebimento dos hóspedes e pontualidade em dar satisfação a quem deve, do que depende a conservação do seu crédito, que é o melhor cabedal dos que se prezam de honrados.

CAPITULO II

Como se há-de haver o senhor de engenho na compra e

conservação das terras e nos arrendamentos delas

     Se o senhor do engenho não conhecer a qualidade das terras, comprará salões por massapés e apicuns por salões. Por isso valha-se das informações dos lavradores mais entendidos e atente não somente à barateza do preço, mas também a todas as conveniências que se hão-de buscar para ter fazenda com canaviais, pastos, águas, roças e matos e, em falta destes, comodidade para ter a lenha mais perto que puder ser e para escusar outros inconvenientes que os velhos lhe poderão apontar, que são os mestres a quem ensinou o tempo e experiência, o que os moços ignoram.

     Muitos vendem as terras que têm, por cansadas ou faltas de lenha, outros porque se não atrevem a ouvir tantos recados semelhantes aos que se davam a Job, do partido queimado, dos bois atolados, dos escravos mortos e do açúcar perdido. Outros, obrigados a vender contra vontade por causa dos credores que os apertam, bem pode ser que ofereçam terras novas e fortes; porém, o comprador corre então outro risco de comprar demandas eternas, pelas obrigações e hipotecas a que estão por repetidas vezes sujeitas. Portanto, nesse caso, fale o comprador com os letrados, pergunte aos credores que é o que pretendem e, se for necessário, com autoridade do juiz, cite a todos para saber o que na verdade se deve; nem conclua a compra antes de ver com seus olhos que é o que compra, que títulos de domínio tem o vendedor e se os ditos bens são vinculados ou livres e se tem parte neles órfãos, mosteiros ou igrejas, para que se não falte, ao fazer da escritura, a alguma condição ou solenidade necessária. Veja também as demarcações das terras se foram medidas por justiça e se os marcos estão em ser, ou se há mister aviventá-los, que tais são os co-hereos, a saber, se amigos da justiça, de verdade e de paz, ou, pelo contrário, trapaceiros, desinquietos e violentos, porque não há pior peste que um mau vizinho.

     Feita a compra, não falte a seu tempo à palavra que deu, pague e seja pontual nesta parte e atente à conservação e melhoramento do que comprou e, principalmente, use de toda a diligência para defender os marcos e as águas de que necessita para moer o seu engenho e mostre aos filhos e feitores os ditos marcos, para que saibam o que lhes pertence e possam evitar demandas e pleitos, que são uma contínua desinquietação da alma e um contínuo sangrador de rios de dinheiro que vai entrar nas casas dos advogados, solicitadores e escrivães, com pouco proveito de quem promove o pleito, ainda quando alcança, depois de tantos gastos e desgostos, em seu favor a sentença. Nem deixe os papéis e as escrituras que tem na caixa da mulher, ou sobre uma mesa exposta ao pó, ao vento, à traça ou ao cupim, para que depois não seja necessário mandar dizer muitas missas a Santo António para achar algum papel importante que desapareceu, quando houver mister exibi-lo. Porque lhe acontecerá que a criada ou serva tire duas ou três folhas da caixa da senhora para embrulhar com elas o que mais lhe agradar e o filho mais pequeno tirará também algumas da mesa para pintar caretas ou para fazer barquinhos de papel em que naveguem moscas ou, finalmente, o vento fará que voem fora da casa, sem penas.

     Para ter lavradores obrigados ao engenho, é necessário passar-lhes arrendamento das terras em que hão-de plantar. Estes costumam fazer-se por nove anos e um de despejo, com obrigação de deixarem plantadas tantas tarefas de cana, ou por dezoito anos e mais, com as obrigações e número de tarefas que assentarem, conforme o costume da terra. Porém, há-de-se advertir que os que pedem arrendamento sejam fazendeiros e não destruidores da fazenda, de sorte que sejam de proveito e não de dano. E na escritura do arrendamento se hão-de pôr as condições necessárias, v. g., que não tirem paus reais, que não admitam outros em seu lugar nas terras que arrendam sem consentimento do senhor delas e outras que se julgarem necessárias, para que algum deles, mais confiado, de lavrador se não faça logo senhor. E para isso seria boa prevenção ter uma fórmula ou nota de arrendamentos feita por algum letrado dos mais experimentados, com declaração de como se haverão despejando, acerca das benfeitorias, para que o fim do tempo do arrendamento não seja princípio de demandas eternas.

CAPITULO III

Como se há-de haver o senhor do engenho com

os lavradores e outros vizinhos e estes com o senhor

     O ter muita fazenda cria comummente nos homens ricos e poderosos desprezo da gente mais pobre e por isto Deus facilmente lha tira, para que se não sirvam dela para crescer em soberba. Quem chegou a ter título de senhor parece que em todos quer dependência de servos, e isto principalmente se vê em alguns senhores que têm lavradores em terras do engenho, ou de cana obrigada a moer nele, tratando-os com altivez e arrogancia. Donde nasce o serem malquistos e murmurados dos que os não podem sofrer e que muitos se alegrem com as perdas e desastres que de repente padecem, pedindo os miseráveis oprimidos a cada passo justiça a Deus por se verem tão vexados e desejando ver aos seus opressores humilhados, para que aprendam a não tratar mal aos humildes, assim como o médico deseja e procura tirar fora a malignidade e abundância do humor pecante que faz o corpo indisposto e doente para lhe dar desta sorte não somente vida, mas também perfeita saúde.

     Nada, pois, tenha o senhor do engenho de altivo, nada de arrogante e soberbos antes seja muito afável com todos e olhe para os seus lavradores como para verdadeiros amigos, pois tais são na verdade, quando se desentranham para trazerem os seus partidos bem plantados e limpos, com grande emolumento do engenho, e dê-lhes todo o adjutório que puder em seus apertos, assim com a autoridade como com a fazenda. Nem ponha menor cuidado em ser muito justo e verdadeiro quando chegar o tempo de moer a cana e de fazer e encaixar os açúcares, porque não seria justiça tomar para si os dias de moer que deve dar aos lavradores por seu turno, ou dar a um mais dias que a outro, ou misturar o açúcar que se fez de um lavrador com o da tarefa de outro, ou escolher para si o melhor e dar ao lavrador o somenos. E para evitar estas dúvidas, ou qualquer outra suspeita semelhante, avise ou mande avisar com tempo a quem por direito se segue, para que possa cortar e carrear a cana e tê-la na moenda no seu dia e haja nas formas seu sinal, para que se distingam das outras. Nem estranhe que os lavradores queiram ver no tendal e casa de purgar, no balcão e casa de encaixar o seu açúcar, pois tanto lhes custou chegá-lo a pôr nesse estado e tanta amargura precedeu a esta limitada doçura.

     Também seria sinal de ter ruim coração fazer má vizinhança aos que moem a cana livre em outros engenhos, só porque a não moem no seu, nem ter boa correspondência com os senhores de outros engenhos, só porque cada qual folga de moer tanto como outro, ou porque a algum deles lhe vai melhor, com menos gasto e sem perdas. E se a inveja entre os primeiros irmãos que houve no mundo foi tão arrojada que chegou a ensanguentar as mãos de Caim com o sangue de Abel, porque Abel levava a bênção do Céu e Caim não, por sua culpa, quem duvida que poderia chegar a renovar semelhantes tragédias ainda hoje entre os parentes, pois há no Brasil muitas paragens em que os senhores de engenho são entre si muito chegados por sangue e pouco unidos por caridade, sendo o interesse a causa de toda a discórdia e bastando talvez um pau que se tire ou um boi que entre em um canavial por descuido para declarar o ódio escondido e para armar demandas e pendências mortais? O único remédio, pois, para atalhar pesados desgostos é haver-se com toda a urbanidade e primor, pedindo licença para tudo, cada vez que for necessário valer-se do que têm os vizinhos e persuadir-se que se negam o que se pede será porque a necessidade os obriga. E quando ainda se conhecesse que o negar-se é por desprimor, a verdadeira e mais nobre vingança será dar logo a quem negou o que se pediu na primeira ocasião dobrado do que pede, para que desta sorte caia por bom modo na conta de como devia proceder.

     Sobre todos, porém, os que se devem haver com maior respeito para com o senhor do engenho são os lavradores que tem partidos obrigados à sua moenda e muito mais os que lavram em terras que o senhor lhes tem arrendado, particularmente quando desta sorte começaram sua vida e chegaram por esta via a ter cabedal, porque a ingratidão e o faltar ao respeito e cortesia devida é nota digna de ser muito estranhada e um agradecimento obsequioso cativa os animos de todos com correntes de ouro. Porém, este respeito nunca há-de ser tal que incline a obrar contra justiça, principalmente quando fossem induzidos a fazer coisa contrária à lei de Deus, como seria a jurar em demandas crimes ou cíveis contra a verdade, e a pôr-se mal com os que com razão se defendem. E o que tenho dito dos senhores do engenho, digo também das senhoras, as quais, posto que mereçam maior respeito das outras, não hão-de presumir que devem ser tratadas como rainhas, nem que as mulheres dos lavradores hão-de ser suas criadas e aparecer entre elas como a Lua entre as estrelas menores.

CAPÍTULO IV

Como se há de haver o senhor do engenho na eleição das pessoas e

oficiais que admitir ao seu serviço e primeiramente da eleição do capelão

     Se em alguma coisa mais que em outra há-de mostrar o senhor do engenho a sua capacidade e prudência, esta sem dúvida é a boa eleição das pessoas e oficiais que há-de admitir ao seu serviço para o bom governo do engenho. Porque sendo a eleição filha da prudência, com razão se arguirá de imprudente quem escolher pessoas ou de ruim vida ou ineptas para o que hão-de fazer. E claro está que uns com a ruim vida desagradarão a Deus e aos homens, e serão causa de muitos e bem pesados desgostos, e outros com a ineptidão causarão dano não ordinário à fazenda. E isto lhe poderão estranhar com razão não só os de casa, por mais chegados a queimar-se ou a chamuscar-se com o seu trato, mas também os de fora e principalmente os lavradores, obrigados a experimentar sem culpa os prejuizos que se seguem ao seu malogrado suor, de não saberem os oficiais o que requer o seu oficio.

     O primeiro que se há-de escolher com circunspecção e informação secreta do seu procedimento e saber é o capelão, a quem se há-de encomendar o ensino de tudo o que pertence à vida cristã, para desta sorte satisfazer à maior das obrigações que tem, a qual é doutrinar ou mandar doutrinar a família e escravos, não já por um crioulo ou por um feitor, que quando muito poderá ensinar-lhes vocalmente as orações e os mandamentos da lei de Deus e da Igreja, mas por quem saiba explicar-lhes o que hão-de crer, o que hão-de obrar e como hão-de pedir a Deus aquilo de que necessitam. E para isso, se for necessário dar ao capelão alguma coisa mais do que se costuma, entenda que este será o melhor dinheiro que se dará em boa mão.

     Tem, pois, o capelão obrigação de dizer missa na capela do engenho nos domingos e dias santos, ficando-lhe livre a aplicação das missas nos outros dias da semana por quem quiser, salvo se se consertar de outra sorte com o senhor da capela, recebendo estipêndio proporcionado ao trabalho. E nos mesmos domingos e dias santos, ou pelo menos nos domingos, se se admitir com esta obrigação, explicará a doutrina cristã, a saber, os principais mistérios da Fé e o que Deus e a Santa Igreja mandam que se guarde; quão grande mal é o pecado mortal que pena lhe tem Deus aparelhada nesta e na outra vida, aonde a alma vive e viverá imortalmente; que remédio nos deu Deus na Encarnação e Morte de Jesus Cristo, Seu Santíssimo Filho, para que se nos perdoassem assim as culpas, como as penas, que pelas culpas se devem pagar; de que modo havemos de confessar os pecados e pedir a Deus perdão deles com verdadeiro arrependimento e propósito firme de não tornar a cometê-los, ajudados da graça divina; em que consiste fazer penitência de seus pecados; quem está no Santíssimo Sacramento do altar, porque está aí e se recebe, com que disposição se há-de receber em vida e por viático na doença mortal; quanto importa ganhar as indulgências para descontar o que se deve pagar no Purgatório; como cada qual se há-de encomendar a Deus para não cair em pecado e oferecer-lhe pela manhã todo o trabalho do dia; quanto são dignos de abominação os feiticeiros e curadores de palavras e os que a eles recorrem, deixando a Deus, de quem vem todo o remédio, os que dão peçonha ou bebidas (como dizem) para abrandar e inclinar as vontades, os borrachos, os amancebados, os ladrões, os vingativos, os murmuradores e os que juram falsos ou por malignidade, ou por interesse, ou por respeitos humanos; e, finalmente, que prémio e que pena há-de dar Deus eternamente a cada qual, conforme obrou nesta vida.

     Procurará também a aprovação para ouvir de confissão aos seus aplicados e para que, sendo sacerdote e ministro de Deus, lhes possa servir freqüentemente de remédio, não se contentando só com acudir no artigo da morte aos doentes. Mas advirta na administração deste sacramento que não é senhor dele, por muita autoridade que tenha, porque se o penitente não for disposto, por causa de estar amancebado, ou andar com ódio do próximo, ou por não tratar de restituir a fama ou a fazenda que deve, ainda que fosse o mesmo senhor do engenho, o não há-de absolver, e nisto poderia haver, por respeito humano, grande encargo de consciência e culpa bem grave.

     Corre também por sua conta pôr a todos em paz e atalhar discórdias e procurar que na capela em que assiste seja Deus honrado e a Virgem Senhora Nossa, cantando-lhe nos sábados as ladainhas e, nos meses em que o engenho não mói, o terço do Rosário, não consentindo risadas, nem conversações e práticas indecentes, não só na capela, mas ainda no copiar, particularmente quando se celebra o Santo Sacrifício da Missa.

     Advirta, além disto, de não receber noivos, nem baptizar fora de algum caso de necessidade, nem desobrigar na Quaresma pessoa alguma sem licença "in scriptis" do vigário a quem pertencer dá-la, nem fazer coisa que toque à jurisdição dos párocos para que não incorra nas penas e censuras que sobre isso são decretadas e debalde se queixe do seu descuido ou ignorância.

     Finalmente, faça muito por morar fora de casa do senhor do engenho, porque assim convém a ambos, pois é sacerdote e não criado, familiar de Deus e não de outro homem, nem tenha em casa escrava para o seu serviço que não seja adiantada na idade, nem se faça mercador ao divino ou ao humano porque tudo isto muito se opõe ao estado clerical que professa e se lhe proibe por vários Sumos Pontífices.

     O que se costuma dar ao capelão cada ano pelo seu trabalho quando tem as missas da semana livres são quarenta ou cinquenta mil réis, e com o que lhe dão os aplicados vem a fazer uma porção competente, bem ganhada, se guardar tudo o que acima está dito. E se houver de ensinar os filhos do senhor do engenho, se lhe acrescentará o que for justo e correspondente ao trabalho.

     No dia em que se bota a cana a moer, se o senhor do engenho não convidar o vigário, o capelão benzerá o engenho e pedirá a Deus que dê bom rendimento e livre aos que nele trabalham de todo o desastre. E quando no fim da safra o engenho pejar, procurará que todos dêem a Deus as graças na capela.

CAPlTULO V

Do feitor-mor do engenho e dos outros feitores menores que assistem na moenda, fazendas e partidos da cana: suas obrigações e soldadas

     Os braços de que se vale o senhor do engenho para o bom governo da gente e da fazenda são os feitores. Porém, se cada um deles quiser ser cabeça, será o governo monstruoso e um verdadeiro retrato do cão Cérbero, a quem os poetas fabulosamente dão três cabeças. Eu não digo que se não dê autoridade aos feitores; digo que esta autoridade há-de ser bem ordenada e dependente, não absoluta, de sorte que os menores se hajam com subordinação ao maior e todos ao senhor a quem servem.

     Convém que os escravos se persuadam que o feitor-mor tem muito poder para lhes mandar e para os repreender e castigar quando for necessário; porém, de tal sorte que também saibam que podem recorrer ao senhor e que hão-de ser ouvidos como pede a justiça. Nem os outros feitores, por terem mando, hão-de crer que o seu poder não é coarctado nem limitado, principalmente no que é castigar e prender. Portanto, o senhor há-de declarar muito bem a autoridade que dá a cada um deles, e mais ao maior, e, se excederem, há-de puxar pelas rédeas com a repreensão que os excessos merecem, mas não diante dos escravos, para que outra vez se não levantem contra o feitor e este leve a mal de ser repreendido diante deles e se nao atreva a governá-los. Só bastará que por terceira pessoa se faça entender ao escravo que padeceu e a alguns outros mais antigos da fazenda, que o senhor estranhou muito ao beitor o excesso que cometeu e que, quando se não emende, o há-de despedir certamente.

     Aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar coices, principalmente nas barrigas das mulheres que andam pejadas, nem dar com pau nos escravos, porque na cólera se não medem os golpes e pode ferir mortalmente na cabeça um escravo de muito préstimo que vale muito dinheiro e perdê-lo. Repreendê-los e chegar-lhes com um cipó às costas com algumas varancadas é o que se lhes pode e deve permitir para ensino. Prender os fugitivos e os que brigaram com feridas ou se embebedaram, para que o senhor os mande castigar como merecem, é diligência digna de louvor. Porém, amarrar e castigar com Cipó até correr o sangue e meter no tronco ou em uma corrente por meses (estando o senhor na cidade) a escrava que não quis consentir no pecado ou o escravo que deu fielmente conta da infidelidade, violência e crueldade do feitor, que para isso armou delitos fingidos, isto de nenhum modo se há-de sofrer, porque seria ter um lobo carniceiro e não um feitor moderado e cristão.

     Obrigação do feitor-mor do engenho é governar a gente e reparti-la a seu tempo como é bem para o serviço. A ele pertence saber do senhor, a quem se há-de avisar para que corte a cana e mandar-lhe logo recado. Tratar de aviar os barcos e os carros para buscar a cana, formas e lenha. Dar conta ao senhor de tudo o que é necessário para o aparelho do engenho antes de começar a moer e logo, acabada a safra, arrumar tudo em seu lugar. Vigiar que ninguém falte à sua obrigação e acudir depressa a qualquer desastre que suceda para lhe dar, quanto puder ser, o remédio. Adoecendo qualquer escravo, deve livrá-lo do trabalho e pôr outro em seu lugar e dar parte ao senhor para que trate de o mandar curar e ao capelão para que o ouça de confissão e o disponha, crescendo a doença, com os mais sacramentos para morrer. Advirta que se não metam no carro os bois que trabalharam muito nos dias antecedentes e que em todo o serviço, assim como se dá algum descanso aos bois e aos cavalos, assim se dê, e com maior razão, por suas esquipações, aos escravos.

     O feitor da moenda chama a seu tempo as escravas, recebe a cana e a manda vir e meter bem nos eixos e tirar o bagaço atentando que as negras não durmam, pelo perigo que há de ficarem presas e moídas, se lhes não cortarem as mãos quando isto suceda, e mandando juntamente divertir a água da roda para que pare. Procura que de vinte e quatro em vinte e quatro horas se lave a moenda e que o caldo vá limpo e se guinde para o parol. Pergunta quanto caldo há mister nas caldeiras para que saiba com este aviso se há-de moer mais cana ou parar até que se dê vazão, para que não azede o que já está no parol.

     Os feitores que estão nos partidos e mais fazendas têm à sua conta: defender as terras e avisar logo o senhor se há quem se meta dentro das roças, canaviais e matos para tomar o que não é seu; assistir aonde os escravos trabalham para que se faça o serviço como é bem; saber os tempos de plantar, limpar e cortar a cana e de fazer roças; conhecer a diversidade das terras que há, para servir-se delas para o que forem capazes de dar; tomar a cada escravo a tarefa e as mãos que é obrigado entregar; atentar para os caminhos dos carros, que sejam tais que por eles se possa conduzir a cana e a lenha, de sorte que não fiquem na lama, e que também os carros se consertem quando for necessário; ver que cada escravo tenha sua foice e enxada e o mais que há mister para o serviço; e esteja muito atento que se não pegue o fogo nos canaviais por descuido dos negros boçais que às vezes deixam ao vento o tição de fogo que lesaram consigo para usarem do cachimbo e, em vendo qualquer labareda, acuda-lhe logo com toda a gente e corte com foices o caminho à chama que vai crescendo, com grande perigo de se perderem em meia hora muitas tarefas de cana.

     Ainda que se saiba a tarefa da cana que um negro há-de plantar em um dia e a que há-de cortar, quantas covas de mandioca há-de fazer e arrancar e que medida de lenha há-de dar, como se dirá em seu lugar, contudo, hao-de atentar os feitores à idade e às forças de cada qual, para diminuírem o trabalho aos que eles manifestamente vêem que não podem com tanto, como são as mulheres pejadas depois de seis meses e as que há pouco que pariram e criam, os velhos e as velhas e os que saíram ainda convalescentes de alguma grave doença.

     Ao feitor-mor dão nos engenhos reais sessenta mil réis. Ao feitor da moenda, aonde se mói por sete ou oito meses, quarenta ou cinquenta mil réis, particularmente se se lhe encomenda algum outro serviço, mas aonde há menos que fazer e não se ocupa em outra coisa, dão trinta mil réis. Aos que assistem nos partidos e fazendas, também hoje, aonde a lida é grande, dão quarenta ou quarenta e cinco mil réis.

CAPITULO VI

Do mestre do açúcar e soto-mestre, a quem chamam banqueiro,

e do seu ajudante, a quem chamam ajuda-banqueiro

     A quem faz o açúcar com razão se dá o nome de mestre, porque o seu obrar pede inteligência, atenção e experiência e esta não basta que seja qualquer, mas é necessária a experiência local, a saber, do lugar e qualidade da cana, aonde se planta e se mói, porque os canaviais, de uma parte, dão cana muito forte e, de outra, muito fraca. Diverso sumo tem a cana das várzeas do que tem a dos outeiros: a das várzeas vem muito aguacenta e o caldo dela tem muito que purgar nas caldeiras e pede mais decoada; a dos outeiros vem mais açucarada e o seu caldo pede menos tempo e menos decoada para se purificar e clarificar. Nas tachas há melado que quer maior cozimento e há outro de menor; um, logo se condensa na batedeira, outro, mais devagar.

Das três temperas que se hão-de fazer para encher as formas depende o purgar-se o açúcar bem ou mal, conforme elas são. Se o mestre se fiar dos caldeireiros e dos tacheiros, umas vezes cansados, outras sonolentos e outras alegres mais do que convém e com a cabeça esquentada, acontecer-lhe-á ver perdida uma e outra meladura, sem lhe poder dar remédio. Por isso vigie em coisa de tanta importancia e se o banqueiro e o ajuda-banqueiro não tiverem a inteligência e a experiência necessárias para suprirem em sua ausência não descanse sobre eles: ensine-os, avise-os e, se for necessário, repreenda-os, pondo-lhes diante dos olhos o prejuízo do senhor do engenho e dos lavradores se se perder o melado nas tachas ou se for mal temperado para as formas.

     Veja que o feitor da moenda modere de tal sorte o moer que lhe não venha ao parol mais caldo do que há mister, para lhe poder dar vazão antes que se comece a azedar, purgando-o, cozendo-o e batendo-o quanto é necessário.

     Antes de se botar a decoada nas caldeiras do caldo experimente que tal ela é e depois veja como os caldeireiros a botam e quando há-de parar, nem consinta que a meladura se coe antes de ver se o caldo está purificado como há-de ser; e o mesmo digo da passagem de uma para outra tacha, quando se há-de cozer e bater, sendo a alma de todo o bom sucesso e diligente atenção.

     A justiça e a verdade o obrigam a não misturar o açúcar de um lavrador com o de outro e, por isso, nas formas que manda pôr no tendal, faça que haja sinal com que se possam distinguir das outras que pertencem a outros donos, para que o meu e o teu, inimigos da paz, não sejam causa de bulhas.

     E para que a sua obra seja perfeita tenha boa correspondência com o feitor da moenda que lhe envia o caldo, com o banqueiro e o soto-banqueiro que lhe sucedem de noite no ofício e com o purgador do açúcar, para que vejam juntamente donde nasce o purgar bem ou mal em as formas e sejam entre si como os olhos que igualmente vigiam e como as mãos que unidamente trabalham.

     O que até agora está dito pertence em grande parte ao banqueiro também, que é o soto-mestre, e ao soto-banqueiro, seu ajudante. E além disso pertence a estes dois oficiais ter cuidado do tendal das formas, e tapar-lhes os buracos, cavar-lhes as covas de bagaço com cavadores, endireitá-las e botar nelas o açúcar feito com as três têmperas, das quais se falará em seu lugar e, depois de três dias, enviá-las para a casa de purgar, ou sobre paviolas, ou às costas dos negros, para que o purgador trate delas.

     Devem também procurar que se faça a repartição justa dos claros entre os escravos conforme o senhor ordenar e que nesta casa haja toda a limpeza e claridade, água, decoada, e todos os instrumentos dos quais nela se usa. E ao mestre pertence ver, antes de começar o engenho a moer, se os fundos das caldeiras e das tachas têm necessidade de se refazerem e se os assentos delas pedem novo e mais firme conserto.

     A soldada do mestre do açúcar nos engenhos que fazem quatro ou cinco mil pães, particularmente se ele visita também a casa de purgar, é de cento e trinta mil réis; em outros dão-lhe só cem mil réis.

     Ao banqueiro, nos maiores, quarenta mil réis, nos menores, trinta mil réis. Ao soto-banqueiro (que comummente é algum mulato ou crioulo escravo de casa) dá-se também no fim da safra algum mimo, se serviu com satisfação no seu ofício, para que a esperança deste limitado prémio o alente suavemente para o trabalho.

CAPITULO VII

Do purgador de açúcar

     Ao purgador do açúcar pertence ver o barro que vem para o Jirall a secar-se sobre o cinzeiro, se é qual deve ser como se dirá em seu lugar; olhar para o amassador, se anda como deve com o rodo no cocho; furar os paes nas formas e levantá-las. Conhecer quando o açúcar está enxuto e quando é tempo de lhe botar o primeiro barro e como este se há-de estender e quanto tempo se há-de deixar, antes de lhe botar o segundo; como se lhe hão-de dar as humidades ou lavagens e quantas se lhe hão-de dar e quais são os sinais de purgar ou não purgar bem o açúcar, conforme as diversas qualidades e temperas. A ele também pertence ter cuidado dos méis, ajuntá-los, cozê-los e fazer deles batidos ou guardá-los para fazer aguardente. Deve juntamente usar de toda a diligência para que se não sujem os tanques do mel e de alguma indústria para afugentar os morcegos, que comummente são a praga quase de todas as casas de purgar.

     Ao purgador de quatro mil pães de açúcar dá-se soldada de cinquenta mil réis. Aos que têm menos trabalho dá-se também menos, com a devida proporção.

CAPITULO VIII

Do caixeiro do engenho

     O que aqui se dirá não pertence ao caixeiro da cidade, porque este trata só de receber o açúcar já encaixado, de o mandar ao trapiche, de o vender ou embarcar conforme o senhor do engenho ordenar, e tem livro de razão de dar e haver, ajusta as contas e serve de agente, contador, procurador e depositário de seu amo, ao qual, se a lida é grande, dá-se soldada de quarenta ou cinquenta mil réis. Falo aqui do caixeiro que encaixa o açúcar depois de purgado. E sua obrigação é mandar tirar o açúcar das formas, estando já purgado e enxuto em dias claros e de sol, assistir, quando se mascava e quando se beneficia no balcão de secar, partindo-o, quebrando-o, como se dirá em seu lugar. Ele é que pesa o açúcar e que o reparte com fidelidade entre os lavradores e o senhor do engenho e tira o dízimo que se deve a Deus e a vintena ou quinto que pagam os que lavram em terras do engenho, conforme o concerto feito nos arrendamentos e o estilo ordinário da terra o qual em vários lugares é diverso, e tudo assenta, para dar conta exactamente de tudo. A ele também pertence levantar as caixas e mandá-las barrear nos cantos, encaixar e mandar pilar o açúcar com a divisão do branco macho, do batido e mascavado, fazer as caras e os fechos, quando assim lho encomendarem os donos do açúcar e, finalmente, pregar e marcar as caixas e guardar o açúcar que sobejou para seus donos, em lugar seguro e não húmido, e os instrumentos de que usa. Entrega as caixas quando se hão-de embarcar, com ordem de quem as arrecada ou como dono delas, ou porque as alcançou por justiça, como muitas vezes acontece, fazendo os credores penhora no açúcar dos devedores, antes que saia do engenho; e de tudo pedirá recibo e clareza, para poder dar conta de si a quem lha pedir.

     A soldada do caixeiro nos engenhos maiores é de quarenta mil réis e se feitoriza alguma parte do dia ou de noite, dão-lhe cinquenta mil réis; nos menores, dão trinta mil.

CAPITULO IX

Como se há-de haver o senhor do engenho com seus escravos

     Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles, no Brasil, nao é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo com que se há com eles depende tê-los bons ou maus para o serviço. Por isso, é necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas. E porque comummente são de nações diversas e uns mais boçais que outros e de forças muito diferentes, se há-de fazer a repartição com reparo e escolha e não às cegas.

     Os que vêm para o Brasil são Ardas, Minas, Congos, de S. Tomé, de Angola, de Cabo Verde e alguns de Moçambique, que vêm nas naus da India. Os Ardas e os Minas são robustos. Os de Cabo Verde e de S. Tomé são mais fracos. Os de Angola, criados em Luanda, são mais capazes de aprender ofícios mecânicos que os das outras partes já nomeadas. Entre os Congos há também alguns bastantemente industriosos e bons, não somente para o serviço da cana, mas para as oficinas e para o meneio da casa.

     Uns chegam ao Brasil muito rudes e muito fechados e assim continuam por toda a vida. Outros em poucos anos saem ladinos e espertos, assim para aprenderem a doutrina cristã, como para buscarem modo de passar a vida e para se lhes encomendar um barco, para levarem recados e fazerem qualquer diligência das que costumam ordinariamente ocorrer.

     As mulheres usam de foice e de enxada como os homens; porém, nos matos, somente os escravos usam de machado.

     Dos ladinos se faz escolha para caldeireiros, carapinas, calafates, tacheiros, barqueiros e marinheiros, porque estas ocupações querem maior advertência.

     Os que desde novatos se meteram em alguma fazenda não é bem que se tirem dela contra sua vontade, porque facilmente se amofinam e morrem.

     Os que nasceram no Brasil, ou se criaram desde pequenos em casa dos brancos, afeiçoando-se a seus senhores, dão boa conta de si e, levando bom cativeiro, qualquer deles vale por quatro boçais.

     Melhores ainda são para qualquer ofício os mulatos; porém, muitos deles, usando mal do favor dos senhores, são soberbos e viciosos e prezam-se de valentes, aparelhados para qualquer desaforo. E, contudo, eles e elas da mesma cor, ordinariamente levam no Brasil a melhor sorte, porque com aquela parte de sangue de brancos que têm nas veias, e talvez dos seus mesmos senhores, os enfeitiçam de tal maneira que alguns tudo lhes sofrem, tudo lhes perdoam e parece que se não atrevem a repreendê-los, antes todos os mimos são seus. E não é fácil coisa decidir se nesta parte são mais remissos os senhores ou as senhoras, pois não falta entre eles e elas quem se deixe governar de mulatos, que não são os melhores, para que se verifique o provérbio que diz que o Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas, salvo quando, por alguma desconfiança ou ciúme, o amor se muda em ódio e sai armado de todo o género de crueldade e rigor. Bom é valer-se de suas habilidades quando quiserem usar bem delas, como assim o fazem alguns; porém, não se lhes há-de dar tanto a mão que peguem no braço e de escravros se façam senhores. Forrar mulatas desinquietas é perdição manifesta, porque o dinheiro que dão para se livrarem raras vezes sai de outras minas que dos seus mesmos corpos, com repetidos pecados, e depois de forras continuam a ser ruína de muitos.

     Opõem-se alguns senhores ao casamento dos escravos e escravas, e não somente não fazem caso dos seus amancebamentos, mas quase claramente os consentem e lhes dão princípio, dizendo: tu, fulano, a seu tempo casarás com fulana; e daí por diante os deixam conversar entre si, como se já fossem recebidos por marido e mulher; e dizem que os não casam porque temem que, enfadando-se do casamento, se matem logo com peçonha ou com feitiços, não faltando entre eles mestres insignes nesta arte. Outros, depois de estarem casados os escravos, os apartam de tal forma por anos que ficam como se fossem solteiros, o que não podem fazer em consciencia.

     Outros são tão pouco cuidadosos do que pertence à salvação dos seus escravos que os têm por muito tempo no canavial ou no engenho sem baptismo, e dos baptizados muitos não sabem quem é o seu Criador, o que hão-de crer, que lei hão-de guardar, como se hão-de encomendar a Deus, a que vão os cristãos à igreja, por que adoram a hóstia consagrada, que vão dizer ao padre quando ajoelham e lhe falam aos ouvidos, se têm alma e se ela morre e para onde vai quando se aparta do corpo. E sabendo logo os mais boçais como se chama e quem é seu senhor e quantas covas de mandioca hão-de plantar cada dia, quantas mãos de cana hão-de cortar, quantas medidas de lenha hão-de dar e outras coisas pertencentes ao serviço ordinário de seu senhor, e sabendo também pedir-lhe perdão quando erraram e encomendar-se-lhe para que os não castigue com prometimento da emenda, dizem os senhores que estes não são capazes de aprender a confessar-se, nem de pedir perdão a Deus, nem de rezar pelas contas, nem de saber os dez mandamentos, tudo por falta de ensino e por não considerarem a conta grande que de tudo isto hão-de dar a Deus, pois (como diz São Paulo), sendo cristãos e descuidando-se dos seus escravos, se hão com eles pior do que se fossem infiéis. Nem os obrigam os dias santos a ouvir missa, antes talvez os ocupam de sorte que não têm lugar para isso, nem encomendam ao capelão doutriná-los dando-lhe por este trabalho, se for necessário, maior estipêndio.

     O que pertence ao sustento, vestido e moderação do trabalho, claro está que se lhes não deve negar, porque, a quem o serve, deve o senhor de justiça dar suficiente alimento, mezinhas na doença e modo com que decentemente se cubra e vista , como pede o estado de servo, e não aparecendo quase nu pelas ruas, e deve também moderar o serviço, de sorte que não seja superior às forças dos que trabalham, se quer que se possam aturar. No Brasil costumam dizer que para o escravo são precisos três PPP, a saber, pau, pão e pano. E posto que comecem mal, principiando pelo castigo, que é o pau, contudo prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir, como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada ou levantada e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos, de que se não usa nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor e sela e freio dourado.

     Dos escravos novos se há-de ter maior cuidado, porque ainda não têm modo de viver como os que tratam de plantar suas roças e os que as têm por sua indústria, não convém que sejam só reconhecidos por escravos na repartição do trabalho e esquecidos na doença e na farda.

     Os domingos e os dias santos de Deus eles os recebem e, quando seu senhor lhos tira e os obriga a trabalhar como nos dias de serviço, se amofinam e lhe rogam mil pragas. Costumam alguns senhores dar aos escravos um dia em cada semana para plantarem para si, mandando algumas vezes com eles o feitor para que se não descuidem, e isto serve para que não padeçam fome, nem cerquem cada dia a casa de seu senhor, pedindo-lhe a ração de farinha. Porém, não lhes dar farinha nem dia para a plantarem, e querer que sirvam de sol a sol no partido de dia e de noite, com pouco descanso no engenho, como se admitirá no tribunal de Deus sem castigo? Se o negar a esmola a quem com grave necessidade a pede é negá-la a Cristo Senhor Nosso, como Ele o diz no Evangelho, que será negar o sustento e o vestido ao seu escravo? E que razão dará de si quem dá serafina e seda e outras galas às que são ocasião da sua perdição e depois nega quatro ou cinco varas de algodão e outras poucas de pano da serra a quem se derrete em suor para o servir e apenas tem tempo para buscar uma raiz e um caranguejo para comer? E se em cima disto o castigo for frequente e excessivo, ou se irão embora fugindo para o mato, ou se matarão por si como costumam, tomando a respiração ou enforcando-se, ou procurarão tirar a vida aos que lha dão tão má, recorrendo (se for necessário) a artes diabólicas, ou clamarão de tal sorte a Deus, que os ouvirá e fará aos senhores o que já fez aos Egípcios, quando vexavam com extraordinário trabalho os Hebreus, mandando as pragas terríveis contra suas fazendas e filhos que se lêem na Sagrada Escritura, ou permitira que, assim como os Hebreus foram levados cativos para Babilónia em pena do duro cativeiro que davam aos seus escravos, assim algum cruel inimigo leve esses senhores para suas terras, para que nelas experimentem quão penosa é a vida que eles deram e dão continuamente aos seus escravos.

     Não castigar os excessos que eles cometem seria culpa não leve, porém, estes se hão-de averiguar antes, para não castigar inocentes, e se hão-de ouvir os delatados e convencidos, castigar-se-ão com açoites moderados ou com os meter em uma corrente de ferro, por algum tempo, ou tronco. Castigar com ímpeto, com animo vingativo, por mão própria e com instrumentos terríveis, e chegar talvez aos pobres com fogo ou lacre ardente, ou marcá-los na cara, não seria para se sofrer entre bárbaros, muito menos entre cristãos católicos. O certo é que, se o senhor se houver com os escravos como pai, dando-lhes o necessário para o sustento e vestido e algum descanso no trabalho, se poderá também depois haver como senhor, e não estranharão, sendo convencidos das culpas que cometeram, de receberem com misericórdia o justo e merecido castigo. E se, depois de errarem como fracos, vierem por si mesmos a pedir perdão ao senhor, ou buscarem padrinhos que os acompanhem, em tal caso é costume no Brasil perdoar-lhes. E bem é que saibam que isto lhes há-de valer, porque de outra sorte fugirão por uma vez para algum mocambo no mato e, se forem apanhados, poderá ser que se matem a si mesmos, antes que o senhor chegue a açoitá-los ou que algum seu parente tome a sua conta a vingança, ou com feitiço ou com veneno.

     Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano e o alegrarem-se inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e do orago da capela do engenho, sem gasto dos escravos, acudindo o senhor com sua liberalidade aos juízes, e dando-lhes algum prémio do seu continuado trabalho, porque, se os juízes e juízas da festa houverem de gastar do seu, será causa de muitos inconvenientes e ofensas de Deus, por serem poucos os que o podem licitamente juntar.

     O que se há-de evitar nos engenhos é o emborracharem-se com garapa azeda ou aguardente, bastando conceder-lhes a garapa doce que lhes não faz dano, e com ela fazem seus resgates com os que a troco lhes dão farinha, feijões, aipins e batatas.

     Ver que os senhores têm cuidado de dar alguma coisa dos sobejos da mesa aos seus filhos pequenos é causa de que os escravos os sirvam de boa vontade e que se alegrem de lhes multiplicar servos e servas. Pelo contrário, algumas escravas procuram de propósito aborto, só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem.

CAPÍTULO X

Como se há-de haver o senhor do engenho no governo da sua família

e nos gastos ordinários de casa

     Pedindo a fábrica de engenho tantos e tão grandes gastos quantos acima dissemos, bem se vê a parcimónia que é necessária nos particulares de casa. Cavalos de respeito mais dos que bastam, charameleiros, trombeteiros, tangedores e lacaios mimosos não servem para ajuntar fazenda, para diminuí-la em pouco tempo com obrigações e empenhos. E muito menos servem as recreações amiudadas, os convites supérfluos, as galas, as serpentinas e o jogo. E por este caminho alguns, em poucos anos, do estado de senhores ricos chegaram ao de pobres e arrastados lavradores, sem terem que dar de dote às filhas, nem modo para encaminhar honestamente os filhos.

     Mau é ter nome de avarento, mas não é glória digna de louvor o ser pródigo. Quem se resolve a lidar com engenho, ou .se há-de retirar da cidade, fugindo das ocupações da República que obrigam a divertir-se, ou há-de ter actualmente duas casas abertas com notável prejuízo, aonde quer que falte a sua assistência e com dobrada despesa.

     Ter os filhos sempre consigo no engenho é criá-los tabaréus, que nas conversações não saberão falar de outra coisa mais que do cão, do cavalo e do boi. Deixá-los sós na cidade é dar-Ihes liberdade para se fazerem logo viciosos e encherem-se de vergonhosas doenças, que se não podem facilmente curar. Para evitar, pois, um e outro extremo, o melhor conselho será pô-los em casa de algum parente ou amigo grave e honrado, onde não haja ocasiões de tropeçar, o qual folgue de dar boa conta de si e com toda a fidelidade avise do bom ou mau procedimento e do proveito ou negligência no estudo. Nem consinta que a mãe lhes remeta dinheiro ou mande secretamente ordens para isso ao seu correspondente ou ao caixeiro, nem creia que o que pedem para livros não possa ser também para jogos. E, por isso, avise o procurador e o mercador, de quem se vale, que lhes não dê coisa alguma sem sua ordem. Porque, para pedirem, serão muito especulativos e saberão excogitar razões e pretextos verosímeis, principalmente se forem dos que já andam no curso e têm vontade de levar três anos de boa vida à custa do pai ou do tio, que não sabem o que se passa na cidade, estando nos seus canaviais; e quando se jactam nas conversações de ter um Aristóteles nos pátios, pode ser que tenham na praça um Asínio ou um Aprício. Porém, se se resolver a ter os filhos em casa, contentando-se com que saibam ler, escrever e contar, e ter alguma tal qual notícia de sucessos e histórias para falarem entre gente, não se descuide de vigiar sobre eles quando a idade o pedir, porque também o campo largo é lugar de muita liberdade e pode dar abrolhos e espinhos. E se se faz cercado aos bois e aos cavalos para que não vão fora do pasto, por que se não porá também algum limite aos filhos, assim dentro como fora de casa, mostrando a experiência ser assim necessário? Contanto que a circunspecção seja prudente e a demasia não acrescente malícia. O melhor ensino, porém, é o exemplo do bom procedimento dos pais e o descanso mais seguro é dar a seu tempo estado, assim às filhas como aos filhos, e, se se contentarem com a igualdade, não faltarão casas aonde se possam fazer trocas e receber recompensas.

CAPITULO XI

Como se há-de haver o senhor do engenho no recebimento dos hóspedes,

assim religiosos como seculares

     A hospitalidade é uma acção cortês e também virtude cristã e no Brasil muito exercitada e louvada porque, faltando fora da cidade as estalagens, vão necessariamente os passageiros dar consigo nos engenhos e todos ordinariamente acham de graça o que em outras terras custa dinheiro; assim, os religiosos que buscam suas esmolas, que não são poucos, e os missionários que vão pelo recôncavo e pela terra dentro com grande proveito das almas a exercitar seus ministérios como os seculares que, ou por necessidade, ou por conhecimento particular, ou por parentes, buscam de caminho agasalho.

     Ter casa separada para os hóspedes é grande acerto, porque melhor se recebem e com menor estorvo da família e sem prejuízo do recolhimento que hão-de guardar as mulheres e as filhas e as moças de serviço interior ocupadas no aparelho do jantar e da ceia.

     O tratamento não há-de exceder o estado das pessoas que se recebem, porque no decurso do ano são muitas. A criação miúda, ou alguns peixes do mar ou rio vizinho, com algum marisco dos mangues, e o que dá o mesmo engenho para doce basta para que ninguém se possa queixar com razão. Avançar-se a mais (salvo em um caso particular por justos respeitos) é passar os limites e impossibilitar-se a poder continuar igualmente pelo tempo futuro.

     Dar esmolas é dar juro a Deus, que paga cento por um, mas em primeiro lugar está pagar o que se deve de justiça e depois estender-se piamente às esmolas, conforme o cabedal e o rendimento dos anos. E nesta parte nunca se arrependerá o senhor de engenho de ser esmoler e aprenderão os filhos a imitar o pai e, deixando-os inclinados às obras de misericórdias os deixara muito ricos e com riquezas seguras.

     Para os vadios tenha enxadas e foices e, se se quiserem deter no engenho, mande-lhes dizer pelo feitor que, trabalhando, lhes pagarão seu jornal. E desta sorte ou seguirão seu caminho ou, de vadios, se farão jornaleiros.

     Também não convém que o mestre do açúcar, o caixeiro e os feitores tenham em suas casas, por tempo notável, pessoas da cidade ou de outras partes, que vêm passar tempo ociosamente; e muito mais se forem solteiros e moços, porque estes não servem senão para estorvar os mesmos oficiais, que hão-de atender ao que lhes pertence e para desinquietar as escravas do engenho, que facilmente se deixam levar do seu pouco moderado apetite a obrar mal. E isto se lhes deve intimar ao principio, para que não acarretem atrás de si sobrinhos ou primos, que com seus vícios lhes dêem pesados desgostos.

     Os missionários, que desinteressadamente vão fazer seu ofício, devem ser reeebidos com toda a boa vontade para que vendo esquivanças, não venham a entender que o senhor do engenho, por pouco afeiçoado às coisas de Deus, ou por mesquinho, ou por outro qualquer respeito, não folga com a Missão, em a qual se ajustam as consciências com Deus, se dá instrução aos ignorantes, se atalham inimizades e ocasiões escandalosas de anos e se procura que todos tratem da salvação de suas almas.

CAPITULO XII

Como se há-de haver o senhor do engenho com os mercadores e outros seus correspondentes na praça e de alguns modos de vender e comprar o açúcar, conforme o estilo do Brasil

     O crédito de um senhor de engenho funda-se na sua verdade, isto é, na pontualidade e fidelidade em guardar as promessas. E assim como o hão-de experimentar fiel os lavradores nos dias que se lhes devem dar para moer a sua cana e na repartição do açúcar que lhes cabe, os oficiais na paga das soldadas, os que dão a lenha para as fornalhas, madeira para a moenda, tijolo e formas para a casa de purgar, tábuas para encaixar, bois e cavalos para a fábrica, assim também se há-de acreditar com os mercadores e correspondentes na praça, que lhe deram dinheiro para comprar peças, cobre, ferro, aço enxárcias, breu, velas e outras fazendas fiadas. Porque se ao tempo da frota não pagarem o que devem, não terão com que se aparelhem para a safra vindoura, nem se achará quem queira dar o seu dinheiro ou fazenda nas mãos de quem lha não há-de pagar, ou tão tarde e com tanta dificuldade que se arrisque a quebrar.

     Há anos em que, pela muita mortandade dos escravos, cavalos, éguas e bois, ou pelo pouco rendimento da cana, não podem os senhores de engenho chegar a dar a satisfação inteira do que prometeram. Porém, não dando sequer alguma parte, não merecem alcançar as esperas que pedem, principalmente quando se sabe que tiveram para desperdiçar e para jogar o que deviam guardar para pagar aos seus credores.

     Nos outros anos de rendimento suficiente e com perdas moderadas ou sem elas, não há razão para faltar aos mercadores ou comissários que negoceiam por seus amos, aos quais devem dar conta de si, e por isso não é muito para se estranhar se, experimentando faltar-se por tanto tempo à palavra com lucro verdadeiramente cessante e dano emergente, levantam com justa moderação o preço da fazenda que vendem fiada e que Deus sabe quando poderão arrecadar.

     Comprar antecipadamente o açúcar por dois cruzados, "verbi gratia", que a seu tempo comummente vale doze tostões e mais, tem sua dificuldade, porque o comprador está seguro de ganhar e o vendedor é moralmente certo que há-de perder, particularmente quando o que dá o dinheiro antecipado não o havia de empregar em outra coisa antes do tempo de o embarcar para o Reino.

     Quem compra ou vende antecipadamente pelo preço que valerá o açúcar no tempo da frota faz contrato justo, porque assim o comprador como o vendedor estão igualmente arriscados. E isto se entende pelo maior preço geral que então o açúcar valer e não pelo preço particular em que algum se acomodar, obrigado da necessidade a vendê-lo.

     Comprar a pagamentos é dar logo de contado alguma parte do preço e depois pagar por quartéis, ou tanto por cada ano, conforme o concerto até se inteirar de tudo. E poderá pôr-se a pena de tantos cruzados mais, se se faltar a algum pagamento, mas não se poderá pretender que se pague juro dos juros vencidos, porque o juro só se paga do principal.

     Quem diz: vendo o açúcar cativo, quer dizer: vendo-o com obrigação de o comprador pagar todas as custas, tirando os três tostões que se pagam na Baía, porque estes correm por conta de quem o carrega.

     Vender o açúcar livre a dez tostões, "verbi gratia", por cada arroba, quer dizer que o comprador há-de dar ao vendedor dez tostões por cada arroba e há-de fazer todos os gastos à sua custa.

     Quem comprou o açúcar cativo e o despachou o vende depois livre e o comprador faz os gastos que se seguem.

     Comprar o açúcar por cabeças quer dizer: comprar as caixas de açúcar pelo número das arrobas que tem na marca, com meia arroba menos de quebra.

     Quando se pesa uma caixa de açúcar para pagar os direitos, se o pesador pesa favorável, diz, "verbi gratia", que a caixa de trinta arrobas tem vinte e oito, e isto El-Rei o sofre e consente de favor. Porém, essa caixa não se vende por este peso, mas pelo que na verdade se achar quando vai a pesar-se na balança fora da alfanfega, que aí está para se tirar toda a dúvida.

     Vender as terras por menos do que valem, com obrigação de se moer a cana que nelas se plantar, no engenho do vendedor, é contrato lícito e justo.

     Comprar, um senhor de engenho a um lavrador que tem cana livre para a moer aonde quiser, a obrigação de a moer no seu engenho, enquanto lhe não restituir o dinheiro que para isso lhe deu quando comprou a dita obrigação, pratica-se no Brasil muitas vezes e os letrados o defendem por contrato justo, porque isto não é dar dinheiro emprestado com obrigação de moer, mas é comprar a obrigação de moer no seu engenho para ganhar a metade do açúcar, ficando a porta aberta ao lavrador para se livrar desta obrigação todas as vezes que tornar a entregar ao comprador o dinheiro que recebeu.

LIVRO III

CAPITULO XII

Do que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana até sair do Brasil

     É reparo singular dos que contemplam as coisas naturais ver que as que são de maior proveito ao género humano não se reduzem à sua perfeição, sem passarem primeiro por notáveis apertos, e isto se vê bem na Europa, no pano de linho, no pão, no azeite e no vinho, frutos da terra tão necessários, enterrados, arrastados, pisados, espremidos e moídos antes de chegarem a ser perfeitamente o que são. E nós muito mais o vemos na fábrica do açúcar, o qual, desde o primeiro instante de se plantar até chegar às mesas e passar entre os dentes a sepultar-se no estômago dos que o comem, leva uma vida cheia de tais e tantos martírios que os que inventaram os tiranos lhes não ganham vantagem.

     Porque se a terra, obedecendo ao império do Criador, deu liberalmente a cana para regalar com a sua doçura os paladares dos homens, estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma cana, com seus artifícios, mais de cem instrumentos para lhe multiplicarem tormentos e penas.

     Por isso, primeiramente fazem em pedaços as que plantam e as sepultam assim cortadas na terra. Mas elas, tornando quase milagrosamente a ressuscitar, que não padecem dos que as vêem sair com novo alento e vigor? Já abocanhadas de vários animais, já pisadas das bestas, já derrubadas do vento e, enfim, descabeçadas e cortadas com foices, saem do canavial amarradas e, oh, quantas vezes antes de saírem daqui são vendidas! Levam-se, assim presas, ou nos carros ou nos barcos à vista das outras, filhas da mesma terra, como os réus que vão algemados para a cadeia ou para o lugar do suplício, padecendo em si confusão e dando a muitos terror. Chegadas à moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto tem de substância? Com que desprezo se lançam seus corpos esmagados e despedaçados ao mar? Com que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço? Arrasta-se pelas bicas quanto humor saiu de suas veias e quanta substância tinham nos ossos; trateia-se e suspende-se na guinda, vai a ferver nas caldeiras, borrifado (para maior pena) dos negros com decoada; feito quase lama no cocho, passa a fartar as bestas porcos sai do parol escumando e se lhe imputa a bebedice dos borrachos. Quantas vezes o vão virando e agitando com escumadeiras medonhas?. Quantas vezes o va escumadeiras medonhas? Quantas, depois de passado por coadores, o batem com batedeiras, experimentando ele de tacha em tacha o fogo mais veemente, às vezes quase queimado e às vezes desafogueado algum tanto, só para que chegue a padecer mais tormentos? Crescem as bateduras nas temperas, multiplica-se a agitação com as espátulas, deixa-se esfriar como morto nas formas, leva-se para a casa de purgar sem terem contra ele um mínimo indício de crime e nela chora furado e ferido a sua tão malograda doçura. Aqui, dão-lhe com barro na cara e, para maior ludíbrio, até as escravas lhe botam sobre o barro sujo as lavagens. Correm suas lágrimas por tantos rios quantas são as bicas que as recebem e tantas são elas que bastam para encher tanques profundos. Oh, crueldade nunca ouvida! As mesmas lágrimas do inocente se põem a ferver e a bater de novo nas tachas, as mesmas lágrimas se estilam à força de fogo em alambique e, quando mais chora sua sorte, então tornam a dar-lhe na cara com barro e tornam as escravas a lançar-lhe em rosto as lavagens. Sai desta sorte do Purgatório e do cárcere tão alvo como inocente e sobre um baixo balcão se entrega a outras mulheres, para que lhe cortem os pés com facões, e estas, não contentes de lhos cortarem, em companhia de outras escravas, armadas de toletes, folgam de lhe fazer os mesmos pés em migalhas. Daí passa ao último teatro dos seus tormentos, que é outro balcão maior e mais alto, aonde, exposto a quem o quiser maltratar, experimenta o que pode o furor de toda a gente sentida e enfadada do muito que trabalhou andando atrás dele e, por isso, partido com quebradores, cortado com facões, despedaçado com toletes, arrastado com rodos, pisado dos pés dos negros sem compaixão, farta a crueldade de tantos algozes quantos são os que querem subir ao balcão. Examina-se por remate na balança do maior rigor o que pesa, depois de feito em migalhas, mas os seus tormentos gravíssimos, assim como não tem conta, assim não há quem possa bastantemente ponderá-los ou descrevê-los. Cuidava eu que, depois de reduzido ele a este estado tão lastimoso, o deixassem, mas vejo que, sepultado em uma caixa, não se fartam de o pisar com pilões nem de lhe dar na cara, já feita em pó, com um pau. Pregam-no finalmente e marcam com fogo o sepulcro em que jaz e, assim pregado e sepultado, torna por muitas vezes a ser vendido e revendido, preso, confiscado e arrastado e se se livra das prisões do porto, não se livra das tormentas do mar, nem do degredo, com imposições e tributos, tão seguro de ser comprado e vendido entre cristãos como arriscado a ser levado para Argel entre mouros. E ainda assim, sempre doce e vencedor de amarguras, vai dar gosto ao paladar dos seus inimigos nos banquetes, saúde nas mezinhas aos enfermos e grandes lucros aos senhores de engenho e aos lavradores que o perseguiram e aos mercadores que o compraram e o levaram degredado nos portos e muito maiores emolumentos à Fazenda Real nas Alfândegas.

Que vantagens tinha quem possuía o título de senhor de engenho?

Resposta. Ele recebia lucro com os escravos e era respeitado por todos! O senhor de engenho era considerado rico, e por esse motivo deveria ser respeitado!

Que era necessário para ser senhor de engenho?

A - Para ser Senhor de Engenho era necessário ser de ascendência nobre, ter boas relações com a Coroa de Portugal e dispor de recursos financeiros que permitissem a instalação de grandes latifúndios, posse de escravos e transformação da cana-de-açúcar em melaço.

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