Como as fronteiras surgiram ao longo do tempo e em diferentes espaços

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. 
ISSN: 1138-9788. 
Depósito Legal: B. 21.741-98 
Vol. XI, núm. 245 (21), 1 de agosto de 2007
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

Número extraordinario dedicado al IX Coloquio de Geocritica
A RELEVÂNCIA DAS FRONTEIRAS NO PERÍODO ATUAL: unificaÇÃo tÉcnica e compartimentaÇÃo polÍtica dos territÓrios[1]

M�rcio Cataia
Departamento de Geografia
Instituto de Geoci�ncias - Unicamp

A relev�ncia das fronteiras no per�odo atual: unifica��o t�cnica e compartimenta��o pol�tica dos territ�rios (Resumo)

O texto interroga a ideologia do �fim das fronteiras pol�ticas�, surgida no in�cio da d�cada de 1980, procurando distinguir a fronteira como zona e a fronteira como linha, classicamente formuladas pela geografia. Com base nesta indica��o, trata das formas gerais da divis�o dos territ�rios pol�ticos surgidos com o Estado territorial: a reflex�o � orientada a partir de uma das concre��es do espa�o geogr�fico, a categoria territ�rio. A an�lise acontece pela discuss�o sobre a inser��o do territ�rio brasileiro no mundo da globaliza��o, sendo registrado que a unifica��o t�cnica do mundo n�o implica em sua uni�o pol�tica. Empiricamente o texto constata que quanto maior � a unifica��o t�cnica do mundo, maior � sua compartimenta��o com a relev�ncia das fronteiras internacionais.

Palavras-chave: territ�rio; fronteiras; compartimenta��o do espa�o.

The relevance of borders today: the technical unification and political compartmentalization of territories (Abstract)

The text explores the ideology of the �end of political borders,� which emerged at the start of the 1980s, seeking to distinguish the border as a zone from the border as a line, based on that classically formulated by geography. Based on this indication, it discusses the general forms of division of political territories that emerged with the territorial State: the reflection revolves around one of the concretions of geographic space, the territorial category. The analysis is based on the discussion of the insertion of Brazilian territory in the world of globalization, registering that the technical unification of the world does not necessary mean its political union. Empirically, the text ascertains that the bigger the technical unification of the world, the larger its compartmentalization with relevance to international borders.

Keywords: territory; borders; space compartmentalization. 


La relevancia de las fronteras en el periodo actual: unificaci�n t�cnica y compartimentaci�n pol�tica de los territorios (Resumen)

El texto interroga la ideolog�a del �fin de las fronteras pol�ticas�, surgida al inicio de la d�cada de 80, buscando distinguir la frontera como zona y la frontera como l�nea, cl�sicamente formuladas por la geograf�a. Con base en esta indicaci�n trata a respecto de las formas generales de la divisi�n de los territorios pol�ticos surgidos con el Estado territorial: la reflexi�n es orientada a partir de una de las concreciones del espacio geogr�fico, la categor�a territorio. El an�lisis acontece por la discusi�n sobre la inserci�n del territorio brasile�o en el mundo de la globalizaci�n, registr�ndose que la unificaci�n t�cnica del mundo no significa su uni�n pol�tica. Emp�ricamente el texto constata que cuanto mayor es la unificaci�n t�cnica del mundo, mayor es su compartimentaci�n con la relevancia de las fronteras internacionales.

Palabras clave: territorio; fronteras; compartimentaci�n del espacio. 

Ao surgirem os modernos Estados territoriais j� herdaram um espa�o interior compartimentado, porquanto preexistia aos territ�rios nacionais uma divis�o espacial do trabalho e uma divis�o pol�tica do territ�rio. Com o desenvolvimento do capitalismo a divis�o do mundo em territ�rios nacionais se sedimenta, e � com base nesta estrutura que as sociedades politicamente se enquadram. Neste quadro as fronteiras t�m o papel de limites demarcadores dos distintos projetos sociopol�ticos.

Hoje, em face � globaliza��o, a compartimenta��o do espa�o mundial revela duas facetas contradit�rias e solid�rias. Por um lado, as fronteiras devem delimitar com clareza o territ�rio nacional que consagra � sociedade que nele vive seu abrigo, este � o princ�pio da soberania internacional, mas por outro lado a economia transnacionalizada opera fluxos financeiros e normativos que atravessam as fronteiras, promovendo um enfraquecimento de suas fun��es destinadas � prote��o. As oportunidades de fluidez oferecidas pelo meio t�cnico-cient�fico e informacional (Santos, 1996) � as revolu��es nos transportes e nas comunica��es ilustram sobejamente esse processo �, possibilitaram a unifica��o t�cnica do planeta, mas paradoxalmente, desde o seu surgimento, esse meio geogr�fico testemunha sua maior compartimenta��o. Nesta Era da velocidade, de encurtamento das dist�ncias geom�tricas, os territ�rios nacionais padecem, em distintos graus, das influ�ncias de um mundo que efetivamente se globaliza, mas � a partir deles que se efetivam as rela��es interestatais, � na sua estrutura que se fundam quadros legais de legitima��o do poder e reconhecimento das soberanias.

Nesse contexto duas raz�es s�o confrontadas, uma global, representada pelas grandes corpora��es e organismos transnacionais, e outra local (Santos, 1996). Ordens e normas globais atingem os lugares reorganizando a vida de rela��es a partir de par�metros sem refer�ncia com o meio local. Mas, em seu processo de difus�o, a din�mica espacial da globaliza��o n�o se reduz � integra��o passiva das partes, pois os fluxos n�o s�o s� financeiros � tendentes � homogeneiza��o �, mas tamb�m migrat�rios (inclusive tur�sticos), informacionais e culturais � tendentes � diferencia��o �, o que promove a valoriza��o da diferen�a e a descoberta de que a organiza��o interna das sociedades se revela decisiva nas din�micas globais.

De fato, h� lugares amea�ados de estandardiza��o, de perda de subst�ncia, no entanto os efeitos das intera��es s�o m�ltiplos e complexos, � por isso nenhum resultado � dado de antem�o. As intera��es s�o enredadas em campos de for�as fluidos, onde os atores interiores n�o s�o desprovidos de meios de a��o e onde os atores exteriores est�o longe de ter pleno poder de manipula��o de todas as vari�veis em jogo. Al�m das hegemonias, distingu�veis entre na��es, organismos internacionais e empresas (Ianni, 2004), a globaliza��o representa a possibilidade de come�armos a divisar com maior nitidez uma �chorodiversidade� mundial.

Essa �chorodiversidade�, nunca � demais repetir, � fruto do trabalho vivo realizando-se sobre o trabalho morto. Mas, o trabalho morto que se imp�e sobre o trabalho vivo, n�o � mat�ria inerte, uma vez que as infra-estruturas territoriais constru�das sob a �gide do Estado nacional s�o elementos ativos da produtividade dos lugares. Por isso, nosso argumento � o de que os compartimentos[2] pol�ticos do espa�o, com a relev�ncia das fronteiras, mant�m-se, apesar de a globaliza��o ter produzido uma hist�ria mundial �nica, como obst�culos � tend�ncia de homogeneiza��o do espa�o.


Formas gerais da compartimenta��o do espa�o

As compartimenta��es do espa�o estruturam-se a partir das divis�es sociais e territoriais do trabalho[3] e das divis�es pol�ticas. Assim, argumentamos que as duas divis�es (do trabalho e pol�tica), em conjunto e reciprocamente, s�o elementos funcionais da expans�o do capital, tanto nos territ�rios nacionais quanto no mundo.

De acordo com Smith (1988), tr�s escalas s�o funcionalizadas pelo capital, ao mesmo tempo em que a ele imp�em restri��es: a escala urbana, a escala do Estado-na��o e a escala global. A escala global corresponde � universaliza��o do trabalho assalariado, onde o capital exige as mesmas condi��es de explora��o para que possa existir e se reproduzir. A escala do Estado-na��o � o ref�gio e o fundamento da universaliza��o do capital. Quando o conjunto dos capitais nacionais � amea�ado pela economia mundial, o Estado os defende com o uso de barreiras alfandeg�rias, tribut�rias, sanit�rias, embargos comerciais e at� o uso dos tanques de guerra. J� a escala urbana, origina-se da divis�o entre cidade e campo. Com o desenvolvimento da cidade capitalista, h� uma diferencia��o sistem�tica entre o local de trabalho e o local de resid�ncia, entre a produ��o e a reprodu��o. A escala global � a escala da �igualiza��o�, enquanto que a escala urbana � a escala da �diferencia��o�. � nesta escala que o capital tira vantagens com rela��o �s diferen�as de sal�rios, impostos, infra-estruturas, legisla��es ambientais, etc. Da� a diferencia��o interna ao Estado-na��o ser necess�ria e funcional ao capital.

Apesar de Smith (1988) n�o analisar o papel das fronteiras internas na �diferencia��o�do espa�o, porque n�o se constituem propriamente numa escala, � fundamental destacar que num pa�s de organiza��o pol�tica federativa como o Brasil, as diferentes legisla��es (tribut�rias, fiscais, ambientais, etc) s� existem porque as fronteiras internas circunscrevem espa�os pol�ticos com poder para legiferar.

Outro argumento refere-se � seletividade de expans�o do capital produtivo stricto senso. Como � de sua l�gica, o capital procura os lugares que proporcionam maiores lucros: for�a de trabalho mais barata; menores impostos; leis ambientais mais flex�veis; sindicatos mais fracos; legisla��es trabalhistas e fiscais mais d�ceis; equipamentos p�blicos apropriados; boa infra-estrutura de circula��o e de comunica��o, etc. � assim que o capital se aproveita da conting�ncia de um espa�o j� constru�do para aprofundar as desigualdades e as diferencia��es socioterritoriais, que por sua vez s�o o motor de novas compartimenta��es territoriais.

Uma terceira vari�vel, eminentemente pol�tica, tamb�m se imp�e. � imposs�vel para uma �nica autoridade pol�tica administrar os territ�rios, sobretudo os de grande extens�o. Raffestin (1993) lembra que sem parti��es o poder n�o tem refer�ncia e estrutura, e dessa forma n�o sabe como exercer suas coer��es. No famoso axioma �dividir para reinar� encontra-se essa preocupa��o com as parti��es do poder, n�o s� com refer�ncia �s suas estruturas sociais, mas tamb�m com refer�ncia �s suas estruturas territoriais. O exerc�cio do poder implica sempre na manipula��o da oposi��o entre continuidade e descontinuidade. O guerrymandering, t�cnica que consiste em recortar circunscri��es eleitorais em fun��o de interesses circunstanciais, retrata o jogo do poder que, criando e recriando constantemente limites[4], sustenta os jogos do poder.

Num pa�s como o Brasil, onde os munic�pios tamb�m produzem leis, a manipula��o dos recortes pol�tico-administrativos � uma tenta��o constante para os grupos que pretendem acessar os instrumentos pol�tico-constitucionais do poder.

Uma quarta vari�vel diz respeito �s duas faces da mobilidade, o transporte (de materialidades) e a circula��o (de informa��es). Como n�o h� integridade territorial sem circula��o e transporte, a a��o do Estado sobre seu territ�rio orienta-se a partir de uma antiga concep��o geopol�tica, a de que os grandes imp�rios econ�micos ou pol�ticos, em todos os tempos, traduziram-se e expressaram-se por suas redes. Brunhes (1962[1956]) afirma que o poder sempre tra�a e constr�i estradas quando se instala em uma nova regi�o e Ratzel (1987[1897]) declara que as estradas oxigenam o territ�rio. As quest�es estrat�gicas da mobilidade projetam sobre os territ�rios o poder do Estado. As redes de transporte s�o os vetores por onde as popula��es podem se estabelecer em localidades novas ou de dif�cil acesso e, portanto de delicado controle pol�tico. � banal dizer que os Estados preocupam-se com os "vazios demogr�ficos�.

Assim, levar popula��es para locais de menor densidade traz consigo a necessidade de novas divis�es no territ�rio para a institui��o de novos poderes locais, inclusive para a administra��o da vida de rela��es que se estabelece. As autonomias locais tamb�m nascem desse processo. Estes aspectos s�o pr�prios de uma pol�tica eminentemente estatal, geopol�tica.

Mas, h� mobilidades que n�o s�o promovidas pelo Estado, n�o s�o geopol�ticas, mas pelas empresas, tendo portanto um fundamento mais geoecon�mico. A realiza��o de investimentos empresariais tem na localiza��o da popula��o um de seus trunfos, talvez o mais fundamental. Tendo interesse primordial em possuir m�o-de-obra qualificada onde fazem os investimentos, as empresas s�o respons�veis hoje por boa parte da distribui��o populacional.

Segundo Raffestin (1993), boa parte das migra��es internas nos pa�ses capitalistas ocidentais tem sua raz�o de ser nos investimentos das empresas, ou melhor, nas estrat�gias das empresas que determinam os movimentos.

No caso do Brasil as estrat�gias empresariais contam com o apoio do Estado. � comum encontrarmos poderes locais e regionais que praticam a guerra fiscal, inclusive fazendo propaganda de tal estrat�gia para atra��o das empresas, todavia os mesmos poderes p�blicos que viabilizam seu territ�rio para as empresas, protestam contra o aumento populacional havido em fun��o da presen�a da empresa.

Uma quinta vari�vel de nossa argumenta��o � guiada pela an�lise de Foucault (1993) sobre as redes de poder. Para Foucault (idem) uma das li��es que se tira do Livro II de Marx � que n�o existe poder no singular, mas muitos poderes ou formas de domina��o. S�o sempre formas locais e regionais de poder. Possuem sua pr�pria modalidade de funcionamento e s�o todas formas heterog�neas de poder.

Ou seja, o poder n�o se exerce territorialmente s� de cima para baixo, dos altos escal�es territoriais para baixo, mas a estrutura do poder baseia-se tamb�m no poder que emana dos escal�es inferiores. A configura��o do poder na Confedera��o Helv�tica e na conforma��o da primeira federa��o do mundo, os EUA, obedeceram ao princ�pio do poder que tamb�m emana de baixo para cima.

Por fim, destacamos uma posi��o menos emp�rica e mais filos�fica da imposi��o dos limites. Segundo Ortega y Gasset (1960), al�m dos limites e sua reprodu��o fazerem parte das atividades humanas, � constitutivo do homem sentir-se em um mundo regionalizado, onde cada coisa e cada homem devem pertencem a distintas regi�es, a distintos �mundos�. N�o se trata de interpreta��es imagin�rias com as quais a mente do homem reage em fun��o de sua perspectiva e localiza��o, mas trata-se de algo que � constitucional ao homem.

Toda rela��o depende da delimita��o de um campo, onde se realizam as rela��es e onde elas se chocam com os limites tra�ados do campo. Desde que o homem surgiu defrontamo-nos cotidianamente com a no��o de limite, sem que nunca, apesar da sua evolu��o, a no��o de limite tenha desaparecido.

N�o h� por que se admirar, pois o limite � um sinal ou, mais exatamente, um sistema s�mico utilizado pelas coletividades para marcar o territ�rio: o da a��o imediata ou o da a��o diferenciada� (Raffestin, 1993:165).

As fronteiras pol�ticas s�o formas assumidas pelos limites que, cristalizadas no territ�rio, s�o a express�o da rela��o que o homem mant�m com os outros homens por meio do territ�rio. A fronteira pol�tica � um dos tipos de limites impostos �s atividades humanas[5].

As compartimenta��es do espa�o encontram sua explica��o em vari�veis culturais, sociais, econ�micas e espaciais, e, da fertiliza��o cruzada destas vari�veis, o que torna o tema bastante complexo. Neste texto, privilegiamos a an�lise das compartimenta��es produzidas a partir da divis�o social e territorial do trabalho, promotora das especializa��es produtivas com a funda��o de quadros de refer�ncia regional, e da divis�o pol�tica que impulsiona a funda��o de novos poderes pol�tico-administrativos.


Unifica��o t�cnica e compartimenta��o pol�tica do territ�rio

O car�ter aut�nomo da informa��o se consolida no atual per�odo. Antes do aparecimento da telegrafia, da radiotelegrafia, do telefone e, mais recentemente dos sat�lites, eram os homens e os objetos que tinham a propriedade de transportar a informa��o, mas com o controle t�cnico e cient�fico das ondas eletromagn�ticas a informa��o adquiriu um novo status, o de ser transportada independentemente dos fluxos materiais.

A partir do final do s�culo XIX e come�o do s�culo XX, as t�cnicas aplicadas � transmiss�o da informa��o promoveram a dissocia��o entre a rede de circula��o de homens e bens e a rede de transmiss�o de informa��es, ainda que homens e bens continuem a portar e transmitir informa��es (Raffestin, 1993).

A difus�o dos tradicionais sistemas de comunica��o j� havia propiciado a autonomia da informa��o, mas ainda n�o era poss�vel conectar qualquer ponto do planeta em tempo real. No p�s-guerra, mas mais especificamente a partir da d�cada de 1970, as NTCI�s (Novas Tecnologias da Comunica��o e da Informa��o), apoiadas na telem�tica (telecomunica��es + inform�tica) e capitaneadas em escala planet�ria pelos sat�lites, propiciaram tecnicamente a interconex�o dos sistemas de telecomunica��es.

O per�odo que emerge dessa revolu��o informacional[6] promove o encurtamento das dist�ncias f�sicas e o surgimento do �tempo real�. SANTOS (1996) considera a �converg�ncia dos momentos� como um dos atributos do atual per�odo, ou seja, a possibilidade de uso imediato das informa��es em qualquer parte do planeta. Os eventos, antes restritos a peda�os do globo e difundidos num tempo lento, passam a capilarizar todo planeta num mesmo momento, produzindo, pela primeira vez, uma empiriciza��o do tempo e uma hist�ria �nica.

Os mesmos eventos que atuam como solventes de antigas ordens, tamb�m s�o catalisadores de uma nova ordem (Barraclough, 1976). As vari�veis explicativas das antigas ordens deixam de reinar neste �momento� de transi��o, sem que as vari�veis em ascens�o tenham se mostrado em sua totalidade, da� a gesta��o neste per�odo/crise, de discursos que, absolutizando as t�cnicas, pregam o fim das fronteiras. De fato, as fronteiras n�o s�o barreiras � unifica��o telecomunicacional do mundo, mas isto n�o significa a federa��o pol�tica do mundo, nem mesmo a coabita��o solid�ria das diferentes partes de um territ�rio nacional. Velocidade e compartimentos pol�ticos s�o dois caracteres distintivos do per�odo atual.

Em verdade, a circula��o da informa��o tamb�m obedece a regras ditadas pelos compartimentos pol�ticos. Em maio de 1999 o cons�rcio Europeu que administra o sat�lite TV-Eutelsat (Gr�-Bretanha, It�lia, Fran�a, Alemanha e Iugosl�via representada pela Rep�blica Federal S�rvia), cortou as transmiss�es desse sat�lite para a Iugosl�via, criando um importante precedente em mat�ria de n�o-discrimina��o da informa��o obtida por esse meio. O principal meio de comunica��o S�rvio foi destru�do por alguns pa�ses europeus (Virilio, 2000). No conflito militar que se desenrolava, a OTAN (Organiza��o do Tratado do Atl�ntico Norte) possu�a a desvantagem de desconhecer a configura��o territorial[7] S�rvia, um saber local[8] evidentemente dominada pelos s�rvios, o que impedia uma invas�o militar imediata por terra. Assim, uma das estrat�gias da OTAN foi desmantelar o sistema de informa��es S�rvio, independentemente da natureza das mensagens que eram transmitidas por um sat�lite de TV.

A interdepend�ncia global dos lugares � patente no atual per�odo, mas tamb�m o � a exist�ncia de centros de comando de redes de informa��o[9]. Antes da guerra, no vigor do acordo de �n�o-discrimina��o� da informa��o, o territ�rio iugoslavo era banhado pelas comunica��es necess�rias � sua vida social. No momento da guerra a fonte secou, os �velhos� Estados-territoriais fizeram valer sua for�a.

Portanto, al�m das fronteiras n�o terem perdido suas fun��es pol�tico-militares, delimitadoras de campos de for�as[10], hoje elas ganham um novo atributo, que � o de tamb�m delimitarem campos informacionais, pois apesar de os sat�lites n�o conhecerem fronteiras, todos os sistemas de recep��o e decodifica��o das informa��es obedecem a crit�rios territoriais, sen�o n�o seria poss�vel a um �nico sat�lite, provedor de informa��es para cinco pa�ses, interromper o sistema de comunica��o para um s� territ�rio, como ocorreu no caso da Iugosl�via.A ideologia da uni�o do mundo, que fundamenta o discurso do fim das fronteiras, obnubila as novas hierarquias da divis�o internacional do trabalho. A cria��o de novas fronteiras pol�ticas evidencia o oposto daquilo que � pregado pelo discurso da globaliza��o econ�mica: de um mundo aberto � circula��o, �s trocas; de um mundo em que as novas tecnologias de transporte, especialmente as de informa��o, eliminam as compartimenta��es territoriais. O que se verifica � que quanto mais sat�lites s�o colocados em �rbita, mais fronteiras s�o produzidas � ainda que para serem atravessadas �, ou seja, � medida que aumenta a densidade t�cnica planet�ria, o mapa pol�tico do mundo fica mais sincopado.


Fronteira: zonas e linhas

As formas podem ser materiais ou imateriais. Um rio ou uma montanha quando usados como limites, s�o comumente chamados de fronteiras naturais. J� o entrecruzamento de latitudes e longitudes na delimita��o dos territ�rios, faz com que a forma confunda-se com seu conte�do t�cnico. Uma forma n�o elimina a outra, pois mesmo as fronteiras baseadas em marcos naturais, s�o alvo de demarca��o tecnol�gica. Do ponto de vista formal (material ou imaterial) a fronteira pode ser uma zona ou uma linha, servindo a uma vasta tipologia[11].

A fronteira como linha � sempre mais absoluta, servindo como marco onde os Estados nacionais, segundo a intensidade de seus poderes, exercem a vigil�ncia (sanit�ria, demogr�fica, ideol�gica, policial ou militar). Internamente as linhas delimitam as subunidades dos territ�rios nacionais quando estes j� t�m todo seu espa�o apropriado (Cataia, 2001). A linha � um limite facilmente cartograf�vel. J� a zona (menos a de guerra), � de dif�cil demarca��o, flex�vel segundo os arranjos socioterritoriais dos campos de for�as opostos.

Para Ratzel (1987[1897]), linhas e zonas s�o limites. As zonas representam a coisa real, enquanto que as linhas representam sua abstra��o. A linha pode ser desenhada, memorizada, medida e � estabelecida por uma decis�o pol�tica, enquanto que a zona � por ess�ncia indeterminada e n�o dependente de decis�es pol�ticas para sua exist�ncia.

Tendencialmente, a zona de fronteira d� origem � linha de fronteira. Nesse sentido a fronteira como linha � o produto de um movimento, sempre transit�rio, justamente porque � hist�rico. Para Ratzel (1987[1897]), toda forma de vida que se propagou sobre a Terra, sempre tomou a forma de um dom�nio, dotado de uma posi��o, uma configura��o e um tamanho, um espa�o de propaga��o, cujos pontos extremos podem ser demarcados sobre uma linha que nomeamos de fronteira.

Considerando que um territ�rio faz fronteira com um ou mais territ�rios, Foucher (1991) assinala que as fronteiras s�o formadas por d�ades, termo que designa a fronteira comum a dois Estados cont�guos. Uma fronteira internacional � formada por tantas d�ades quantos s�o os pa�ses lim�trofes, ou em outras palavras, a d�ade refere-se a segmentos de fronteira. A fragmenta��o de um territ�rio, dando origem a um novo Estado, produz fronteiras internacionais e d�ades para aquele que se autonomizou, e novas d�ades para os territ�rios lim�trofes. O s�culo XX foi pr�digo na cria��o de novos compartimentos: no in�cio do s�culo o mundo possu�a aproximadamente cinq�enta territ�rios nacionais, hoje esse n�mero passa dos duzentos. Assim, o surgimento de d�ades ou fronteiras tamb�m � fun��o do tempo.

A forma � sempre datada, incorporando novas fun��es � medida que novas a��es dotam a forma de novos conte�dos. As fronteiras n�o decorrem s� do espa�o, mas tamb�m do tempo: extens�o e dura��o formam o conceito de limite. � o tempo que d� significado � forma, ou seja, mais importante que a forma das fronteiras � a sua forma��o. Sendo hist�rica, resulta de elei��es, por isso afirmamos a inexist�ncia de fronteiras naturais. As fronteiras, mesmo quando apoiadas em marcos naturais, s�o o resultado de elei��es sociais e n�o de imposi��es naturais. De fato, nos albores da hist�ria, os elementos naturais condicionavam os homens e suas atividades, impondo-lhes barreiras f�sicas. Uma montanha, um deserto ou uma floresta podiam significar limites (zonais) � circula��o, todavia o desenvolvimento t�cnico superou as barreiras naturais e, � medida que estas iam caindo uma a uma, erigiam-se outras barreiras, agora n�o mais naturais, mas pol�ticas[12]. Quanto mais limites naturais foram rompidos e o mundo ecumenizado, mais limites pol�ticos foram produzidos. Para George (197_, p. 147), �os limites naturais, quando autorit�rios, podem enquadrar diversas �agita��es�, mas, quanto mais progridem as t�cnicas, mais propendem os limites imperiosos a ser transgredidos, n�o surgindo, nesse caso, o obst�culo sen�o como limiar nas despesas de explora��o ou circula��o�.

Para Vidal de la Blache (apud Ancel, 1938), �a civiliza��o � a luta vitoriosa do homem contra os obst�culos que a natureza colocou diante dele; n�o h� muralha nem fosso que n�o possam ser vencidos�.

Hoje, no mapa pol�tico do mundo, os obst�culos � livre circula��o dos homens e das coisas s�o representados pelas fronteiras pol�ticas, que in-formam onde � o dentro e o fora. A fronteira � uma das formas da informa��o.


A fronteira como informa��o

De acordo com Jameson (1985), o mecanismo operacional central da dial�tica, tanto hegeliana quanto marxista, � a contradi��o entre uma forma e seu conte�do. At� Hegel o pensamento filos�fico concebia o conte�do como mat�ria, material inerte, passivo. A mudan�a de mat�ria para conte�do permitiu ver a din�mica da rela��o sujeito-objeto, ou em outras palavras, da indissociabilidade entre forma e conte�do.

A forma-conte�do (Santos, 1996), torna transparente o car�ter informacional das fronteiras. A fronteira � uma concre��o da vida social que se realiza por meio de sua cristaliza��o. Dizer que a fronteira � informa��o significa dizer que ela porta uma a��o social e que justamente por isso ela condiciona a sociedade que a criou.

A etimologia do voc�bulo informa��o deriva da palavra informar, que significa colocar em forma, dar uma forma ou um aspecto, formar, criar. A informa��o pode ser compreendida como algo que � colocado em forma, colocado em ordem. A dispers�o de letras sobre um papel nada significa se as letras n�o obedecerem a um sistema de classifica��o que d� sentido �quilo que est� sendo ordenado, portanto a informa��o implica no ordenamento de elementos ou partes de um sistema mais amplo. A informa��o expressa a organiza��o das partes de um sistema. Para Zeman (1970), a informa��o �, ao lado do espa�o, do tempo e do movimento, outra forma fundamental da exist�ncia da mat�ria.

Do ponto de vista da organiza��o dos territ�rios, n�o � a informa��o em si, medida em bits, que d� significado aos elementos do sistema de limites, mas o seu efetivo uso pol�tico, interessando aos estrategistas seu conte�do e significado e n�o a quantidade de sinais. Para Morin (1993[1977]), La numeraci�n en bits de las Tablas de la Ley, del C�digo Civil, de los pensamientos de Pascal, del Manifiesto Comunista no tiene sentido ni intr�nseco ni comparativo�.

Informa��es transmitidas por cabos ou por ondas eletromagn�ticas n�o s�o do mesmo g�nero daquelas que os homens portam, uma vez que cabos e ondas circulam com mensagens carentes de significa��o afetiva e emocional.

Para Raffestin (1993), a fronteira � uma informa��o lato senso indispens�vel a qualquer a��o. Como informa��o, constitui-se numa dimens�o que nunca est� ausente, participando de todo projeto econ�mico, pol�tico ou social de um Estado.�

A fronteira � informa��o porque s�o os homens, as sociedades que lhe atribuem essa fun��o. Delega-se �s fronteiras o papel de informar � para controlar � ao conjunto da sociedade o que pertence e o que n�o pertence a um dado espa�o. Aut�nomo ou soberano o espa�o pol�tico sempre possui margens. Em verdade, o territ�rio nasce das estrat�gias de controle necess�rio � vida social, o que � outra maneira de exprimir a soberania. A observa��o de Latour (1996, p. 160-161) com rela��o aos obst�culos de rua, utilizados para diminuir a velocidade dos autom�veis, tamb�m � v�lida para as fronteiras pol�ticas:

�Pode-se considerar que esse obst�culo age com brutalidade /.../ acontece que o engenheiro das pontes e cal�adas, os prefeitos e os pais de alunos decidiram usar a intermedia��o desses objetos t�cnicos para obter, justamente, comportamentos convenientes.�

Ao lembrar as diversas fun��es das fronteiras, Raffestin (1993) observa que a fun��o legal nunca est� ausente. De fato, as fun��es s�o a express�o da informacionaliza��o das fronteiras. A fronteira sempre estar� ali, ali onde pode a qualquer momento incorporar uma nova informa��o e transmiti-la, expressando uma ordem: dentro e fora, comunh�o e excomunh�o.

Por isso as fronteiras n�o se enfraquecem. As fronteiras podem ter deixado de expressar uma dada ordem, mas elas continuam ali, como um pr�tico-inerte[13] (Santos, 1996; Moraes, 2000). Continuam no seu lugar esperando o momento adequado para expressar outras/novas ordens


Considera��es finais

Em fun��o do desenvolvimento das Novas Tecnologias da Comunica��o e da Informa��o, que inegavelmente intensificou a integra��o planet�ria, alguns posicionamentos pol�ticos mais extremados passaram a pregar a evanesc�ncia das fronteiras. Contrariando tal postura, que tem sido avessa a exames mais detidos dos problemas das compartimenta��es e fragmenta��es territoriais, argumentamos que o discurso sobre o fim das fronteiras baseia-se na suposta indissociabilidade entre circula��o (transporte de mat�ria) e comunica��o (transporte de informa��es).

At� o come�o do s�culo XX, quando as redes de circula��o (homens e coisas) e de informa��o formavam uma s� estrutura, as fronteiras podiam ser relativamente fechadas, pois o ritmo da informa��o e das coisas era dado pelo ritmo dos homens, porque s� homens e coisas portavam informa��o, portanto fechar uma fronteira aos homens significava fech�-la tamb�m �s informa��es. Hoje, quando se fala no fim das fronteiras n�o se considera que a informa��o e a comunica��o podem circular por duas estruturas distintas. Uma fronteira pode n�o ter mais significado ou efic�cia frente �s ondas eletromagn�ticas que povoam a atmosfera, sobretudo a servi�o do sistema financeiro internacional, no entanto, ainda representam o dentro e o fora quando se trata das mercadorias, das pessoas e da pol�tica.

Foi Ratzel (1987[1897]) quem disse que n�o existem conflitos de fronteiras, mas conflitos socioterritoriais transformados pelos diplomatas em quest�es de fronteira. Igualmente, o discurso do fim das fronteiras desconsidera que as formas possuem conte�do social. Os desenhos territoriais, firmados pelas fronteiras, s�o instrumentos de regula��o social, pois in-formar o territ�rio tamb�m � governar (Santos, 1994). Como forma-conte�do, toda quest�o de fronteira remete �s constru��es hist�ricas, tanto sociais quanto territoriais, por isso as fronteiras n�o acabaram, mas incorporaram o esp�rito de seu tempo.


Notas

[1] Este texto � resultado parcial de pesquisa que vem sendo realizada com apoio do CNPq.

[2] O termo �compartimento do espa�o� para designar os territ�rios nacionais �Westphalianos� demarcados por fronteiras pol�ticas � referido a Jean Gottmann (La Politique des �tats et Leur G�ographie. Paris, Armand Colin 1952, e, �G�ographie Politique�, in Encyclopedie de la Pl�iade, Paris, Gallimard, 1966)

[3] Andr� Roberto Martin (�As Fronteiras Internas e a �Quest�o Regional� do Brasil�, tese de doutorado apresentada ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ci�ncias Humanas da USP, 1993. Exemplar fotocopiado) afirma que as fronteiras internas t�m a mesma import�ncia para o Estado classista que as externas, servindo ao mesmo tempo como base e instrumento da divis�o social e territorial do trabalho.

[5] Como lembra Lia Os�rio Machado (�Limites, fronteiras, redes�. Em Strohaecker, T. M., Damiani, A., Schaffer, N. O., Bauth, N., Dutra, V. S., orgs. Fronteiras e Espa�o Global. AGB-Porto Alegre: Porto Alegre, p. 41-49, 1998), limites e fronteiras n�o s�o sin�nimos. H� limites que n�o tomam a fei��o de uma fronteira pol�tica, mas tamb�m condicionam as atividades sociais. Entretanto, estas formas de limites n�o s�o objeto de an�lise neste texto.

[6] Evidentemente n�o estamos afirmando que a Revolu��o Informacional reduz-se a fei��es t�cnicas. Todavia, para as dimens�es e prop�sitos deste texto, destacamos um elemento da Revolu��o Informacional que � a autonomia da informa��o.

[7] A configura��o territorial corresponde aos objetos naturais e artificiais, como florestas, montanhas, t�neis, pontes, etc.

[8] Os norte-americanos sabem bem, porque aprenderam no Vietn�, o que significa o saber local no caso de uma guerra. O termo t�cnico militar � �conhecer o terreno�, e este � estrat�gico.

[9] De acordo com Boaventura de Sousa Santos (A gram�tica do Tempo. Para uma nova cultura pol�tica. S�o Paulo, Cortez, 2006), todos os endere�os eletr�nicos mundiais (IP �Internet Protocol) est�o alocados em treze servidores, dez nos EUA, dois na Europa e um no Jap�o. Se estes servidores fossem desligados desapareceria a internet. Al�m disso, � uma empresa privada norte-americana (sem fins lucrativos), com sede em Los Angeles (ICANN � Internet Corporation for Assigned Names and Numbers) que, em articula��o com o Departamento de Com�rcio dos EUA, gere todos os dom�nios atribu�dos no mundo inteiro (ou seja, gere o cadastro da Internet mundial).

[10] O termo is�baras pol�ticas (Ancel, 1938), utilizado para designar as fronteiras, permanece bastante atual.

[11] Quanto �s tipologias, pode-se consultar Ancel (1938), Ratzel (1987[1897]), Delgado de Carvalho (�Geografia das Fronteiras�. Revista Brasileira de Geografia, Ano I, 1939, Rio de Janeiro), Foucher (1991) e Cataia (2001).

[12] Para Camille Vallaux (Geografia Social. El suelo y el Estado. Madrid, Daniel Jorro Editor.1914), as fronteiras naturais corresponderiam � antiga no��o de fronteira compreendida como espa�o vazio, como espa�o anec�meno. Com rela��o aos Estados, as fronteiras artificiais seriam as verdadeiras fronteiras naturais porque conviriam � natureza e � maneira de ser das sociedades pol�ticas.

Como as fronteiras surgiram ao longo do tempo em diferentes espaços?

As fronteiras políticas mudam com o tempo através de guerras, tratados e comércio. Depois da Primeira (1914 - 1918) e Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), o mapa da Europa foi quase completamente redesenhado.

Como surgiram as fronteiras?

As fronteiras entre países foram estabelecidas no decorrer da história, pela ocupação populacional, acordos entre nações ou conquistas militares. Historicamente as fronteiras foram, em geral, influenciadas por fatores étnicos, linguísticos e culturais de uma dada população.

Como se deu a construção das fronteiras do nosso país?

O Tratado de Tordesilhas, em 1494, foi a primeira divisão conceitual do território entre Portugal e Espanha para separar as terras que seriam exploradas. O tratado de Madri, em 1750, foi um dos acordos que formalizou essa divisão levando em consideração a exploração e o povoamento da nação colonizadora.

O que e uma fronteira e como elas podem ser?

As fronteiras são os limites entre duas partes distintas, por exemplo, dois países ou dois estados. Elas podem ser definidas como a separação entre dois territórios.

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